"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

R.I.P.


Marty Thau com Malcolm McLaren e Bernie Rhodes (segundo e terceiro, dir. para esq.), 
agentes dos Sex Pistols e dos The Clash, respectivamente

MARTHY THAU
[1938-2014]

Morreu hoje, com 75 anos de idade e de causa ainda desconhecida, Marty Thau, agente de bandas rock, produtor, empresário, e nome intimamente ligado ao underground nova-iorquino, nomeadamente ao submundo punk e new-wave de finais de setentas.

Não obstante este estatuto, a entrada de Thau no circo rock'n'roll até aconteceu no meio mainstream, primeiro na revista Billboard, depois como executivo de subsidiárias das grandes editoras. Foi nesta qualidade que esteve directamente ligado às edições americanas de discos históricos de peixes graúdos como Van Morrison e John Cale, ainda durante os sixties. No início da década seguinte, por vontade própria, abandonou a big league e dedicou-se exclusivamente ao underground. Para a história ficará lembrado como o agente dos New York Dolls, banda semi-falhada nos intentos de sucesso, mas determinante no lançamento das sementes punk. Os frutos forma colhidos pelo próprio Thau, que gravou as primeiras demos dos Ramones e esteve também presente nos primeiros passos dos Blondie. Porém, como produtor, o seu trabalho mais significativo é o seminal álbum de estreia homónimo dos Suicide, de 1977. Para o lançamento deste disco fundou a Red Star Records, primeira grande editora independente americana depois do fim dos sessentas, e selo também de trabalhos de bandas como Richard Hell & The Voidoids, The Real Kids, ou The Fleshtones. Da sua exclusiva responsabilidade é também uma compilação de bandas new-wave, ainda antes desta tendência dominar a primeira metade da década de 1980 da MTV. Consta que, até esta data, Marty Thau dedicava-se ainda à conclusão da auto-biografia Rockin' The Bowery: From The New York Dolls To Suicide, na qual teria certamente muitas histórias para revelar desse fascinante pedaço da história da música popular.

 
Suicide "Ghost Rider" [Red Star, 1977]

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Before sunset
















Há encontros que, leve o tempo que levar, estão destinados a acontecer um dia. Como aconteceu com Joe Pernice e Norman Blake, duas almas-gémeas representantes do que melhor se faz em matéria de sunshine-pop happy/sad, o primeiro à frente dos Pernice Brothers, o último com os Teenage Fanclub. Sendo um oriundo dos states, e o outro da Escócia, o encontro aconteceu longe de casa, em Toronto, no Canadá, e ficou a dever-se a uma feliz coincidência: ambos passam algum tempo no país da folha de acer por serem casados com nativas. Para partilhar as afinidades, formaram uma banda chamada The New Mendicants, na qual milita ainda o baterista canadiano Mike Belitsky (The Sadies).

Noutros tempos, a formação deste projecto seria noticiada com o destaque normalmente reservado a esta coisa dos super-grupos. Hoje, com os maus tratos a que a pop mais pura está sujeita, um álbum como Into The Lime é lançado com a maior das discrições. Terá, no entanto, a atenção devida pelos fieis, que sabem que aqui vão encontrar canções em número suficiente com as doses certas de doçura e melancolia. E sabem também que essas canções serão inevitavelmente melódicas e terão coros harmoniosos. Efectivamente, Into The Lime não falha em nenhum desses propósitos de servir a banda sonora para o lusco-fusco, e permite ainda a Norman Blake reviver os sons fuzzy da juventude num par de temas atípico no alinhamento: "Shouting Match" e "Lifelike Hair". O primeiro é power-pop elementar, o segundo tem a sujidade retro que os Primal Scream não desdenhariam. Alegadamente, a maioria das canções, escritas em regime de total parceria, foram compostas para dar música a A Long Way Down, a mais recente adaptação cinematográfica de um romance de Nick Hornby, admirador e amigo tanto de Pernice como de Blake. No entanto, consta que as mesmas, compostas a pedido do próprio escritor, não mereceram a aprovação dos produtores do filme. Entre eles está um tal Johnny Depp que, certamente, terá mais certezas que nós comuns mortais para se dar a luxo de esbanjar canções pop deste quilate, por sinal espécie bastante rara nos tempos que correm.

[Ashmont / One Little Indian, 2014]

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Here comes the sun

















Talvez ainda não vos tivesse dito, mas tenho de vos confessar que me começa a enfastiar toda esta corrente revivalista em que tudo agora é psych. Não tanto pela quantidade de ofertas, mas pela artificialidade da esmagadora maioria, invariavelmente produto decalcado das fontes do passado e devidamente polido para não magoar o ouvido "moderno". Quando é assim, qual é a necessidade da existência deste ror de bandas quando podemos continuar a desfrutar da real thing? Há excepções, claro. Uma delas, sou levado a crer, são os britânicos Temples, que no ano passado nos brindaram com um par de excelentes singles banhados pelo mesmo sol da Califórnia que outrora abençoou a música dos The Byrds. Certamente derivativos, mas com o traço pop de um requinte que nos faz ansiar por um álbum num misto de receio e expectativa.

Editado nesta semana, Sun Structures inclui aquela parelha de temas, o que reduz o número de novidades mas possibilita que duas grandes canções possam chegar a maior número de ouvidos. Num trabalho que não defrauda de forma alguma as melhores previsões, fica assim assegurado o elemento byrdsiano, que se dissipa no restante alinhamento para dar lugar a muitos ecos dos The Beatles. É inevitável a comparação aos contemporâneos Tame Impala mas, para o nosso bem, os Temples ainda respeitam a essência da canção pop no mesma razão que os australianos enveredam pelo delírio virtuoso. Outra influência assumida por James Bagshaw, vocalista, guitarrista e elemento mais experiente, é o prog britânico de inícios de setentas, sentida sobretudo pelas referências esotéricas que, ainda segundo a mesma fonte, são mais adereço estilístico do que propriamente uma doutrina. Na vontade de experimentar diferentes fontes, sem se deter no decalque directo e no excesso de purismo, e a partir daí urdir óptimas canções pop intemporais, reside talvez o trunfo que distingue os Temples da concorrência. A propósito de Sun Structures, e da forma como este assimila as diferentes referências, lembrei-me agora da fulgurante estreia dos The Coral, há mais de uma década atrás. Resta agora cruzar os dedos e torcer para que, depois de superado o primeiro teste, os Temples sejam capazes de ter carreira tão significativa e regular como a daqueles.

"Mesmerise" [Heavenly, 2014]

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Good cover versions #81

















CATHERINE WHEEL _ "30 Century Man" [Fontana, 1992]
[Original: Scott Walker (1969)] 

30 Century Man by Catherine Wheel on Grooveshark

Surgidos nos alvores de noventas na cidade costeira de Norfolk, os Catherine Wheel pareciam condenados a ficar recordados como mero sub-produto da vaga shoegaze que então vigorava no Reino Unido. Não faltou quem apontasse o primeiro álbum (Ferment, de 1992) como um derivado óbvio de Ride e The House of Love. De facto, naquele disco, a banda não demonstrava traços de grande personalidade, limitando-se a decalcar as explosões espectrais dos primeiros e o sentido melódico dos últimos. A viragem estava para breve, tendo ficado a dever-se a um simples EP, por sinal composto quase em exclusivo por versões de temas de outrem. 

Neste registo de afirmação, os Catherine Wheel endureceram a sonoridade, tornando-se capazes de resistir à avalanche grunge, algo que não sucederia com a maioria dos seus pares. Em "30 Century Man", o tema-título do EP, quase quadriplicam a duração do original, criando espaço para diversos clímaxes de guitarras em espiral de distorção. A versão vive de uma dinâmica que alterna as partes contemplativas, normalmente cantadas, com os segmentos de deriva sónica. Diga-se que, em bom rigor, do original de Scott Walker pouco mais é mantido que a letra. Naquele, uma curta trova acústica, tudo se limita a contenção, algo atípico no seu autor, normalmente reconhecido pela exuberância da voz de barítono.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Bone machine

















Face às cores garridas da música que fazia a "moda" de Brooklyn há pouco mais de um par de anos, os Hospitality eram ave-rara com a sua revisão moderna da twee-pop com quase três décadas. Precisamente em 2012, deram-se a conhecer com um álbum homónimo, disco simpático mas ao qual faltava qualquer traço distintivo para o fazer grudar aos tímpanos. Talvez porque faltasse à banda o engenho para urdir canções imediatas, do calibre das dos "concorrentes" como os Camera Obscura ou os Allo Darlin'.

De então para cá, os Hospitality viram-se reduzidos de quarteto a trio, e esta perda que poderia ter-lhes causado mossa obrigou-os a reinventar-se com uma sonoridade mais esquelética, mas com o nervo que antes estava ausente. O resultado desta operação de cosmética está no novo Trouble, álbum no qual a vocalista Amber Papini se emancipa face a Tracyanne Campbell e Elizabeth Campbell - frontwomen das citadas bandas da concorrência - e perde os trejeitos típicos de uma bibliotecária. A voz, várias vezes num staccato frenético (oiça-se "I Miss Your Bones"), está em sintonia com as arestas agudas das guitarras, e as suas letras têm agrura em dose superior à da doçura. Alarga-se a paleta de instrumentos, com o recurso a sopros insinuantes e a sintetizadores datados de oitentas, estes apenas perdoados em defesa da variedade. Algo esquizofrénico para uma assimilação imediata, Trouble e os seus dez pedaços de ansiedade e reboliço urbano acabam por revelar, com as sucessivas audições, um estranho poder de sedução pop que ainda desconhecíamos nos Hospitality.

 
"Going Out" [Merge, 2014]

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Ao vivo #115
















Sonic Boom / Experimental Audio Research @ Teatro Maria Matos, 06/02/2014

Embora com uma carreira pós-Spacemen 3 relativamente mais discreta em termos mediáticos que a do antigo companheiro Jason Pierce, não se pode dizer que Peter Kember se tenha entregue à preguiça nestas mais de duas décadas. Pelo contrário, é já vasta a obra editada tanto como Sonic Boom, "alcunha" que ganhou já nos tempos daquela banda lendária, como ainda à frente dos Spectrum ou dos Experimental Audio Research, este último um colectivo pelo qual têm passado outros rebeldes da coisa rock. Além disso, e com especial incidência nos anos mais recentes, tem sido bastante requisitado no papel de produtor. É precisamente nessas funções que se encontra no nosso país, novamente a produzir para Panda Bear, presença essa que possibilitou e motivou o concerto da passada quinta-feira.

Embora o espectáculo tenha sido anunciado com o título acima, aquilo a que pudemos assistir foi mais uma súmula das diferentes facetas de Kember, a possível no espaço de hora e meia face à longa duração de todas as peças apresentadas sem qualquer intervalo. Essa resenha acontece naquilo que poderemos designar como a primeira parte do concerto, espaço também para a versão (dos Kraftwerk) reverente às influências, algo do qual já os Spacemen 3 não se coibiam. É nesta fase que temos a oportunidade de escutar os temas mais próximos do formato canónico de canção, embora sempre corrompidos pela vontade de expandir os sons com o intuito de induzir os sentidos. Apesar da presença solitária em palco, acompanhado apenas da "maquinaria", este é um espectáculo bastante mais elaborado do que aquele, bastante informal, que Peter Kember trouxe há uns anos ao Museu do Chiado, como se afere das projecções preparadas para o efeito, em consonância com o cariz psicotrópico da música. Para a suposta segunda parte, está reservada apenas uma sumptuosa peça, a rondar os 40 minutos de duração, na qual desfilam todos os ingredientes que têm movido Kember desde a adolescência, todos extraídos das correntes renegadas do rock. Faz-se aqui jus ao experimentalismo a que a alude o nome do projecto em cartaz, com uma lenta progressão de sons refractados que conduzem a um estado lisérgico, no qual perdemos qualquer noção de tempo. Coadjuvado pela excelente efeito das imagens no fundo do palco, Sonic Boom desperta-nos do transe apenas com o singelo agradecimento que segue o último som, para arrancar um intenso e merecido aplauso.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Mil imagens #46



John Lydon (Public Image Ltd) - Nova Iorque, 1989
[Foto: Joe Dilworth]

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Misery loves company














Entramos no novo ano e mantém-se a promessa de que nos meandros da música electrónica vai continuar a haver motivos para considerarmos esta uma época dourada. Bem, corrigindo, não vos falo da electrónica pura-e-dura, mas daqueles estetas paisagísticos que tanto podem recorrer à manipulação de sons "orgânicos", como o contrário, isto é, reproduzir o real a partir de sons sintetizados. Um deles, novo nestas andanças, é Steven Shade, músico escocês com um passado ligado às correntes menos ortodoxas do rock, do math ao post-rock, o que certamente tem repercussões no seu trabalho actual.

Depois da passagem por diferentes bandas, assume-se como Sevendeaths, projecto com o qual acaba de editar o álbum Concreté Misery, disco percorrido por uma estética obscurecida, com afinidades com a obra de um Tim Hecker. Porém, a principal diferença que salta à vista é a aura harmoniosa que raramente está presente na música do canadiano. Quando o negrume se adensa, e os drones se tornam mais impenetráveis, estamos próximos da melancolia subtraída da agressão própria do black metal. Atendendo à toada lenta e arrastada, há, portanto, aproximações ao universo explorado pelos Sunn O))). Também a música concreta e o minimalismo, tendências cuja descoberta terá sido determinante na viragem estética de Steven Shade, são determinantes nos processos de Concreté Misery. Embora assim, em teoria, este disco possa parecer uma manta de retalhos desconexa, asseguro-vos de que é uma obra bastante coesa na assimilação das diferentes linguagens musicais. Com um forte cariz cinemático, chega a conter momentos de uma beleza latente, embora nos interstícios corroída pela ferrugem da melancolia.

"All Night Graves" [LuckyMe, 2014]

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

First exposure #63

















EAGULLS

Proposta irreverente e algo insólita, na encruzilhada do post-punk com a facção "progressiva" do hardcore. Expectativas em alta para álbum debute já no horizonte.

Formação: George Mitchell (voz); Mark Goldsworthy (gtr); Liam Matthews (gtr); Tom Kelly (bx); Henry Ruddel (btr)
Origem: Leeds, Inglaterra [UK]
Género(s): Indie-Rock, Post-Punk, Psych-Rock, Noise-Rock
Influências / Referências: Killing Joke, The Clash, The Cure, Public Image Ltd, Merchandise, No Age, Hookworms

 
"Nerve Endings" [Partisan, 2013]

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O jogo das diferenças #26


THE BEATLES
Help!
[Parlophone, 1965]

THE CHILLS
Brave Words
[Flying Nun, 1987]

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Sad but true

















Ainda me lembro das primeiras músicas ouvidas das Dum Dum Girls, na altura ainda um projecto pessoal de Dee Dee Penny, ela que no fundo tem sido o rosto e a única força criativa daquilo que passou a ser entendido como uma banda. Apesar da baixa fidelidade desses temas, já se pressentia na autora a capacidade para se destacar na escrita de boas canções no numeroso contingente que tanto piscava o olho às memórias indie pós-C86, como aos girl-groups de sessentas. O álbum I Will Be (2010) confirmou essas expectativas, algo que o He Gets Me High, o excelente EP de 2011, fez questão de superar. Depois veio o declínio, precoce como é comum nos nossos dias. E até lhe perdoamos o excesso de pompa dramática do segundo álbum (Only In Dreams, de 2011), seguramente derivada de acontecimentos menos felizes na vida pessoal da sua criadora. O pior foi End Of Daze (2012), um inconsequente e polido EP com único ponto a favor numa versão das esquecidas Strawberry Switchblade, comprovando o ouvido clínico de Dee Dee nesse aspecto.

Já desconfiados, ouvimos o novíssimo álbum Too True e concluímos que, afinal, as Dum Dum Girls são algo tão fake como as milhentas bandas actuais que acusamos de regurgitar e reembalar produto reconhecível para vender como se de novo se tratasse. Desde logo pela reincidência na colaboração com Sune Rose Wagner, ele que com os dinamarqueses The Raveonettes se tornou um mestre nestas coisas da "música plástica". Sem abdicar em absoluto das guitarras enevoadas, talvez para não chocar em demasia os seguidores indie chic, Dee Dee navega agora no mar colorido que fazia a programação dos primeiros tempos da MTV. Portanto, Too True é um desfile de truques daquela new wave requentada para as massas que há trinta anos fazia as delícias do público americano. Assim, tanto pode estar próximo da inconsequência middle of the road de uma Pat Benatar ("Rimbaud Eyes"), como da versão feminina com cio de um Billy Idol ("In The Wake Of You"). O flirt "gótico", que já se adivinhava pela indumentária habitual de Dee Dee, evidencia-se em "Lost Boys And Girls Club", o primeiro single que cairia como ginjas numa prequela da saga Twilight realizada por John Hughes. Para além da expressividade da voz, talvez o grande ponto positivo de Too True seja a novidade surfy de "Cult Of Love". Mas isso são apenas os primeiros dois minutos em trinta possíveis, o que é manifestamente pouco.

 
"Lost Boys And Girls Club" [Sub Pop, 2013]

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Há 20 anos era assim #10









KRISTIN HERSH
Hips And Makers
[4AD, 1994]




Com a saída motivada pela insatisfação pelo seu papel "secundário" de Tanya Donelly, houve quem temesse pelo futuro dos Throwing Muses, uma das bandas mais peculiares do espectro indie de oitentas em geral, e do catálogo da 4AD em particular. A própria Kristin Hersh, meia-irmã daquela e detentora da parte de leão na autoria das canções da banda, parece ter ficado incomodada com o abandono. O primeiro reflexo foi Red Heaven (1992), o mais furiosamente rock dos discos dos Muses até então, ao qual se seguiu o anúncio de um período sabático. O maior sinal de alerta, contudo, chegou com a edição do primeiro álbum a solo de Hersh, praticamente gravado em regime auto-suficiente.

A primeira constatação de Hips And Makers é a de que não poderia estar mais afastado da abrasão eléctrica de Red Heaven, já que é um disco essencialmente acústico. Estranha-se até que a produção tenha sido entegue a Lenny Kaye, habituado a acompanhar a visceralidade Patti Smith e normalmente afecto à sujidade rock. Este é também um trabalho delicado, de profundo intimismo, no qual cedo percebemos que as tiras perturbadoras que povoavam as letras de Kristin Hersh nos Muses afinal tinham um cunho pessoal. Recorde-se que foi por esta altura que a autora revelou que sofria de doença bipolar. O francamente fantasmagórico "Your Ghost" dá o mote, com um violoncelo soturno a sublinhar uma melancolia ancorada na sensação de perda. Michael Stipe, que na altura gozava o sucesso recente e desmedido dos R.E.M. dá uma ajuda nos coros, mas nem o estrelato deste valeu a Hersh uma exposição que fosse além do culto dos fieis do costume. Na mesma toada do tema de abertura, "Houdini Blues", "Close Your Eyes", ou "The Letter", adensam o clima lúgubre, deixando no ar uma sensação de desvanecimento, sugerido pelas incríveis tonalidades variáveis da voz. Recorrendo quase em exclusivo à guitarra acústica, com umas pinceladas de violoncelo aqui, umas notas de piano acolá, Kristin Hersh ainda ousa sair da redoma do recolhimento, e assegurar a frontalidade dos Muses. Acontece no desalinhado "Sundrops" e na expressiva primeira parte de "A Loon". A faceta terna, seguramente motivada pela maternidade recente, surge representada por "Beestung", quase uma canção de embalar, e a versão infantilóide do tradicional "The Cuckoo". Já em "Teeth", ou em "Tuesday Night", é-nos permitido o papel de voyeurs da intimidade conjugal.

Sem mais alcançar o efeito surpresa da novidade introduzida por Hips And Makers, Kristin Hersh adoptou esta linha de instimismo para os seus trabalhos em nome próprio, que já são alguns e sempre com motivos de interesse. Quando à pop fracturada, misto de raiva e delicadeza angelical, ficou reservada para os discos que ainda vão saindo com a chancela Throwing Muses, que afinal não chegaram a acabar. Apenas tornaram os longos hiatos de ausência uma constante, felizmente sempre interrompidos com discos merecedores de elogios.



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

R.I.P.


PETE SEEGER
[1919-2014]

Há vidas assim, longas e plenas. Como foi a de Pete Seeger, que ontem morreu com 94 anos, a maior parte deles dedicadas à folk, tornando-se uma autêntica lenda da música de raiz americana.

Para ficar com o seu nome gravado no livro das memórias da música popular, teria bastado a Pete Seeger a autoria - a partir do Livro de Eclesiastes - de "Turn, Turn, Turn!", tema originalmente editado pelo trio The Limeliters, e posteriormente gravado próximo da perfeição na versão popularizada pelos The Byrds. Mas houve muito mais incidências, numa carreira iniciada na década de 1940, essencialmente com canções inspiradas pelas atrocidades da Guerra Civil Espanhola. O teor fortemente politizado da escrita de Seeger fez dele um dos principais percursores da folk interventiva, comparável em importância a Woody Guthrie. Foi, portanto, uma forte influência de Bob Dylan, de quem foi também um impulsionador nos primeiros tempos de carreira. Com a Guerra do Vietname, o discurso de Seeger agudizou-se, e as suas ligações a movimentos de ideologia comunista valerem-lhe o veto do establishment norte.americano. Talvez por isso, passou por décadas de total esquecimento, voltando à ordem do dia apenas em finais de noventas, quando a folk e o americana voltaram a ser motivo de interesse de novas gerações. Com mais vale tarde que nunca, em 2006, Bruce Springsteen dedicou-lhe um álbum inteiro de canções por si inspiradas. Poucos anos antes, já suspeitos do costume como o próprio Boss, Billy Bragg ou Ani Di Franco, haviam participado num disco de tributo.

"Where Have All The Flowers Gone?" [ao vivo em Estocolmo, 1968]

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

No reino dos cangurus















As boas novas que vão chegando da Austrália sob a forma de música levam-nos a questionar que raio de aditivos aquela gente põe na água para consumo. Por enquanto, as movimentações das bandas mais excitantes daquelas longínquas paragens apenas parecem interessar aos mais atentos ao underground, mas em breve, creio, haverá matéria para se começar a falar num "movimento" rock de tendência leftfield. Tomemos como exemplo os Blank Realm, quarteto em actividade já desde meados da década passada que tem feito um trajecto rumo a uma maior visibilidade, depois da psicadelia noisy impenetrável que caracterizava os primeiros registos.

No último Go Easy (2012), não obstante alguma bizarria deliberada, a banda fazia claros esforços por se aproximar do formato da canção estandardizada. Os progressos nesse sentido verificam-se no novíssimo e brilhante Grassed Inn, seguramente e sob qualquer prisma o disco mais acessível do catálogo. Se do anterior dizíamos nada ter em comum com os conterrâneos de Brisbane The Go-Betweens, agora temos de rever a opinião sobre os Blank Realm e reconhecer-lhes, a espaços, aquele sentir marítimo da banda lendária da terra natal. Porém, sem o hiper romantismo daqueles, pois nas letras e vozes dos irmãos Daniel e Sarah Spencer (a do rapaz bastante mais presente, desta feita) há apenas sarcasmo e cinismo, sem qualquer traço de sentimentos de afecto. Também ensombrados pelo espírito dos Velvet Underground, os Blank Realm pedem emprestada às bandas neozelandesas ligadas à Flying Nun a cartilha das canções pop deliberadamente imperfeitas, com ritmos desengonçados e guitarras rugosas. Apesar desta notória maior "facilidade", os oito temas de Grassed Inn ainda se deixam contaminar por uma ténue sujidade, algo que nos lembra amiúde os saudosos Royal Trux, nomeadamente nos jogos e na cadência das vozes masculino/feminino. Por isso, este é ainda daqueles discos - como qualquer grande disco - que exige insistentes audições até ao entranhamento. Depois disso, facilmente concluiremos que é o primeiro diamante em bruto do novo ano.

"Falling Down The Stairs" [Fire, 2014]

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Singles Bar #91









ORANGE JUICE
Felicity
[Polydor, 1982]




Pode parecer exagero, mas é praticamente indesmentível que os Orange Juice tenham estado na base de toda a excelente produção musical oriunda da Escócia desde a sua curta existência. Até diria mais: a eles pertence o mérito pela definição das regras da canção indie-pop, tal como a coisa era entendida na década de oitentas. Foram os principais pioneiros de toda uma tendência arredada das tabelas de vendas, contando com aliados como os conterrâneos Aztec Camera e Josef K. Na demanda da pureza e da perenidade pop em era dada a "futurismos" rapidamente datados, todas estas bandas contaram com a alto patrocínio de Alan Horne, fundador da lendária Postcard Records. A ideia por detrás da editora de Glasgow, baseada no exemplo da Motown, era a de lançar singles perfeitos com o objectivo de se tornar, tal como a fonte de inspiração, uma fábrica de hits. O sucesso era também a meta de Edwyn Collins, vocalista e principal compositor dos Orange Juice, mas cedo percebeu que a Postcard não dispunha dos meios nem da organização para tal.

Escrito pelo guitarrista James Kirk, "Felicity" faz parte do lote de temas originalmente lançados ainda nos tempos da independência, numa versão pouco polida e até algo rude, dadas as parcas condições que Horne tinha para oferecer. Com a ruína da Postcard, e a deslocação dos Orange Juice para uma multinacional, o mesmo tema foi recuperado, regravado em melhores condições e escolhido para single promocional do excelso álbum de estreia You Can't Hide Your Love Forever. Foi apenas um de vários hits menores para a banda, mas paradigmático de uma proposta que se destacava de qualquer tendência vigente à época. Reverentes às suas influências, os Orange Juice conciliavam aqui o inconciliável: por um lado a guitarra desengonçada e chocalhada dos Velvet Underground, por outro o pulsar do ritmo funk dos Chic. Outras músicas negras, nomeadamente a soul, estão patentes no tom grave e na cadência de Edwyn Collins. Na letra, embora não da sua autoria, este exprime um exacerbado romantismo ingénuo, talvez enganador se atentarmos no cinismo latente, imagens de marca da sua própria escrita omnipresentes em toda a obra da banda. Ao largo, uma miríade de bandas tirava e notas e esperava para acontecer, norteada pelos princípios dos Orange Juice. Do vasto rol, só a título de exemplo, destacamos duas que poderiam não ter acontecido tal como as conhecemos, não fossem canções como "Felicity": The Smiths e The Wedding Present. Não será por acaso que estes últimos reconheceram a reverência gravanso a sua própria versão do tema.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

The lady sings punk















Consta que, ainda adolescente, Kathleen Hanna percebeu que seria de luta o seu estatuto de mulher na sociedade. Na vida adulta, a amizade com Kurt Cobain seria apenas um faît divers caso não tivesse sido ela a dar origem ao título do tema que mudaria para sempre a face da música popular. No entanto, o seu maior legado musical são as Bikini Kill, banda integralmente feminina que fundou em 1990. A importância do quarteto nascido na fervilhante "cena" do noroeste americano extravasa as fronteiras da própria música, sendo determinantes ao nível comportamental, na atitude a partir daí assumida por inúmeras rock girls num universo tendencialmente machista. Inspirada pela figura tutelar de uma Joan Jett, pelo espírito de independência de um Calvin Johnson, e pela postura interventiva de uns Fugazi, Hanna esteve na origem do movimento que ficou conhecido como riot grrrl. A partir do aparecimento das Bikini Kill, e dos seus concertos de confronto aos clichés do establishment macho, é infindável o rol de bandas de tendência feminista, atitude punky, e discurso vitriólico a reconheceram-lhe a influência e, sobretudo, o encorajamento: dos Huggy Bear aos Gossip, das Sleater-Kinney às Pussy Riot.

Logo após o fim das Bikini Kill, em 1997, Kathleen Hanna fundou as Le Tigre. Nesta nova aventura, manteve o tom politizado nas letras mas flectiu na linguagem musical. Agora, a proposta era substancialmente mais dançável, com ligação directa à tendência funk do período pós-punk. Talvez inadvertidamente, Hanna acabaria uma vez mais por estar à frente de algo e ser seguida por um rebanho nas opções, nomeadamente o sem número de revivalistas post-punk que na década passada surgiram como cogumelos. Actualmente, mais contida, integra uma banda mista, mais ainda maioritariamente feminina: The Julie Ruin. O nome deriva de o único álbum a solo, no curto hiato entre as duas bandas anteriores, e a sonoridade, embora mais próxima das convenções pop/rock, não esquece tanto o reboliço das Bikini Kill, como o apelo dançante das Le Tigre. Aqui e ali, a voz ainda é irrequieta, e o discurso, embora mais refinado, não perdeu a contundência.

Obviamente que uma figura com semelhante trajecto tem de suscitar forte admiração em certos sectores femininos, ou até mesmo idolatria. Que o diga a realizadora Sini Anderson, autora do recente documentário The Punk Singer, inteiramente dedicado a Kathleen Hanna. Para o dito, foram recolhidos depoimentos do marido Adam Horovitz (Beastie Boys) e de inúmeras companheiras de armas, entre elas Corin Tucker e Carrie Brownstein (Sleater-Kinney), Joan Jett, e Kim Gordon (Sonic Youth). Já com algumas semanas de rodagem lá fora, o filme tem sido apontado como excessivamente reverente à sua figura central, mas também extremamente revelador até para os mais versados na vida e obra de Hanna. Independentemente do que se diz, gostaríamos de o ver por cá, pois não é todos os dias que figuraças apenas ao nível underground merecem tamanhas mordomias.

 
[IFC Films, 2013]

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

People have the power
















Já ninguém pode negar que os anos mais recentes têm sido de autêntica revitalização da soul, com a edição de discos aconselháveis em número como já não se verificava há décadas. Este pequeno movimento, fruto sobretudo do crescente interesse de um público adulto e branco, tem o sentimento de sobra que faltou àquele período fugaz no inícios de oitentas, algo lamechas, que rapidamente abriu caminho às mega-estrelas carpideiras do R&B para consumo das massas. No epicentro deste belo revivalismo tem estado a nova-iorquina Daptone Records, editora com uma atitude laboriosa e devota desde os alvores deste novo século. Às custas deste pequeno grupo de geeks da soul, já tivemos o prazer de travar conhecimento com o maravilhoso Charles Bradley, homem com uma história incrível que teve o reconhecimento do seu talento já sexagenário. Também o "esquecido" Lee Fields é actualmente alvo de uma justíssima redescoberta graças às boas gentes da Daptone.

Sem qualquer demérito para os citados, porém, a estrela da companhia é Sharon Jones, também ela iniciada nas lides discográficas já numa idade madura, embora não tanto como a de Bradley. Sempre acompanhada dos fieis The Dap-Kings, banda que integra os fundadores da Daptone e outros músicos que acompanharam Lee Fields nos anos da invisibilidade, tem lançado discos a bom ritmo e de bom nível desde a fundação da editora. O último deles, já o quinto álbum de originais, é o novíssimo Give The People What They Want, gravado com alguma urgência depois de ter sido diagnosticado à cantora um tumor pancreático. Fazendo das fraquezas forças, podemos afirmar que Sharon Jones arranca aqui o seu melhor trabalho, também o mais pessoal e menos politizado do catálogo. Embora o título remeta directamente para um velho tema dos The O'Jays, típico da soul "progressiva" da década de 1970, a sonoridade deste novo álbum está completamente desligada dessas "modernices", já que o respeito pela soul da velha escola - a de sessentas - é absoluto. O habitual comentário social resume-se praticamente a um par de temas, deixando mais espaço para os assuntos do coração. Por isso, a voz de Sharon Jones é menos ostensiva do que o costume, mas também mais maleável e virtuosa na sua contenção, desafiando o meio dominado pelos homens, tal como o fez Aretha Franlin décadas antes dela. Sem a querer pôr ao nível da Diva, o que é certo é que Jones navega com notável à-vontade por diferentes registos, sobretudo a southern soul, mas também com digressões pelo classicismo de Filadélfia e pelo sentir pop da Motown. No elogio a Give The People What They Want é também imperioso referior o trabalho dos Dap-Kings, em perfeita sintonia com a cantora, com arranjos extremamente cuidados e luxuriantes, sopros abundantes e profusamente groovy, e ainda coros altamente harmoniosos, estes cortesia das Dapettes.

 
"Retreat!" [Daptone, 2013]

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Black hole sun















Já desde inícios da década passada que os adeptos do género musical normalmente associado ao conservadorismo devem andar a lamentar que já não se façam "metaleiros" como antigamente. Foi por essa altura que começámos a ouvir falar de bandas como Isis, Pelican, ou Red Sparowes, cujo visual em pouco coincidia com o do headbanger típico. Gente com uma sensibilidade que não se resumia às historietas de fantasia e feitiçaria do heavy metal primordial, esta adornava a sua música com elementos afins com o post-rock ou o shoegaze, uma tendência que ficaria baptizada como post-metal. Aquilo que era novidade, rapidamente passou a saturação e a esgotamento de ideias, algo que os pontas-de-lança Isis terão percebido, decidindo terminar funções com dignidade. Ainda que fugaz e algo subterrâneo, este pequeno "movimento" foi o suficiente para chamar a atenção da comunidade indie para sonoridades mais extremas, bem como para alargar horizontes ao consumidor habitual de metal.

Se os citados já tinham chocado as falanges conservadoras, o que dizer agora então do Deafheaven, colectivo californiano que gira em torno do vocalista George Clarke e do guitarrista e compositor Kerry McCoy? Bem, olhando para a dupla nuclear, corremos sérios riscos de os tomar por um bando de geeks da electrónica. Nada de mais errado, pois a matéria prima dos Deafheaven é algo de tão extremo como o black metal, esventrado no superlativo segundo álbum Sunbather, cuja rodela se esconde sob uma capa de perfeita simplicidade que pouco ou nada tem a ver com o imaginário das bandas congéneres do norte da Europa. Também a música do disco, verdadeiramente épico, não se resume aos guinchos maléficos e à cacofonia e distorção extremas, já que, tal como nos casos acima citados, também pede emprestadas as dinâmicas do post-rock e as texturas idílicas do shoegaze. Assim, após o impacto inicial, é sem surpresas que alternamos entre picos de uma vertigem infernal e planícies contemplativas, com guitarras lânguidas e até pianos delicados, sem que se note qualquer incompatibilidade nessas mudanças de registo súbitas. Por outro lado, o conteúdo "lírico" não é a habitual manifestação de misantropia associada ao black metal, mas sim algo de profundamente melancólico e, diria até, ligeiramente romântico. Seguindo o exemplo de pioneiros fusionistas como os Godflesh ou os Neurosis, e a veia experimentalista destes, os Deafheaven não demonstram qualquer receio de correr riscos, juntando à paleta algo de tão inesperado como a spoken word, materializado em leituras de Milan Kundera, à mistura com samples de negociações com dealers (!) e de ladainhas de pregadores de rua. Certo de que o improvável cocktail de Sunbather irá, por motivos diferentes, criar repulsa tanto no público do metal como no de outras tendências mais ortodoxas, não menos certo estou que possa também derrubar preconceitos de ambos os lados. Desde que haja ouvidos polidos para tal, claro está.

[Deathwish Inc., 2013]

domingo, 12 de janeiro de 2014

O jogo das diferenças #25


DAVID BOWIE
The Next Day
[Columbia, 2013]

GIRLS NAMES
The Next Life EP
[Slumberland, 2013]

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Biscoito com canela

















Não se apresenta como tarefa fácil, prosseguir uma carreira depois de, durante uma década inteira, se ter estado à frente de uma das bandas de maior referência desse período. Que o diga Stephen Malkmus, que depois ter encabeçado os Pavement, pior do que ter perdido a relevância, é já votado à indiferença por muitos dos que o idolatravam na banda que o notabilizou. Tratamento algo injusto, se atentarmos que os álbuns que já leva em nome próprio (na maior parte acompanhado pelos The Jicks), e que já são em maior número que os dos Pavement, não sendo propriamente excepcionais, estão longe de serem considerados maus discos, embora Face The Truth (2005) não ande assim tão longe. Por outro lado, nos anos mais recentes, à medida que a banda de companhia foi interagindo mais no processo criativo, há mesmo que reconhecer que os discos ficaram a ganhar no nível qualitativo. São os casos de Real Emotional Trash (2008), delírio jam impregnado de rock setentista, e principalmente do último Mirror Traffic (2011), ainda a percorrer as mesmas referências, mas mais concentrado no canção canónica.

O período de graça estende-se ao novíssimo Wig Out At Jagbags, também a navegar nas águas do freak rock dado à técnica da década de 1970, mas com uma maior soltura que o anterior. À falta de melhor elogio, o apuro técnico de Malkmus e dos The Jicks é (mais uma) resposta a quem gracejava com as supostas limitações dos Pavement enquanto executantes. Felizmente, o álbum tem outras e mais significativas qualidades que a mestria dos músicos. Com as sucessivas audições, e com o necessário distanciamento para evitar comparações com um glorioso passado, cada um dos doze temas revela uma frescura que já não julgávamos possível nestes autores, convencendo-nos de que cada um dos muitos detalhes é factor de enriquecimento dos mesmos. Próximo de completar meio século de vida, Malkmus cede nuns quantos temas a um registo introspectivo que deixa adivinhar que a maturidade é uma inevitabilidade. Porém, estes são apenas uma das facetas do disco, pois a corrosão sarcástica próxima do absurdismo ainda é matéria abundantemente explorada pelo enfant terrible incorregível. Portanto, este é mais um trabalho motivador de muitos sorrisos trocistas, mas também de uma leveza quase pop que o aproxima da obra de uns The Sea and Cake, estes há muito em torno da quase perfeição do formato canção, que fazem questão de disfarçar sob o rigor da técnica.

 
"Cinnamon And Lesbians" [Matador, 2014]