"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Desenterrar o passado
















Embora não gozem da mesmo estatuto em território europeu, em casa as Sleater-Kinney são aquilo a que se pode chamar uma instituição, um expoente da fervilhante cena musical do noroeste estado-unidense. Com alguma desconfiança, pode até argumentar-se que as moças de Portland souberam apenas capitalizar o estilhaço riot grrrl que as antecedeu, bem como a atenção posta na vizinha Seattle em inícios de noventas. No entanto, tais alegações serão tremendamente injustas com o percurso ímpar de uma banda que, sem abdicar de um teor altamente politizado (essencialmente feminista), nunca se rendeu à estagnação. Afinal, não são muitas as bandas que se podem gabar de um legado de sete álbuns, sem pontos baixos, e em constante e subtil progressão. Do lote altamente conistente, contudo, é imperativo destacar um par de discos, um da sonoridade mais directa da primeira fase, outro da complexidade adquirida do período avançado. Falamos, obviamente, do terceiro Dig Me Out (1997), e primeiro em que a baterista Janet Weiss se juntou às guitarristas/vocalistas Corin Tucker e Carrie Brownstein para constituir a formação clássica que perduraria até à despedida, e do derradeiro e avassalador The Woods (2005). Perante o brilhantismo deste último, foi com alguma estupefacção que recebemos a notícia da separação em 2006, suavemente anunciada como um "hiato por tempo indeterminado".

Desde então, Corin dedicou-se à família e a uma discreta carreira a solo, enquanto Carrie e Janet se reuniram no super-grupo Wild Flag, projecto breve que rendeu apenas um álbum homónimo, ao qual o tempo ainda concederá o estatuto de clássico. A última fez também parte dos The Jicks, a banda que tem acompanhado o ex-Pavement Stephen Malkmus. Porém, cada aparição de qualquer das três com novo projecto, era sempre motivo para manifestação da nostalgia das Sleater-Kinney. Para que os infiéis possam entender toda a importância atribuída ao trio como um dos mais relevantes colectivos do rock no feminino, a novíssima caixa retrospectiva Start Together é ferramenta indispensável. Digo-vos que inclui a totalidade da obra gravada numa edição limitada a 3000 exemplares em vinil colorido, sendo que também é possível adquirir cada um dos sete álbuns remasterizados individualmente, em CD ou no convencional vinil negro, e sem os habituais brindes dos boxsets. Além de extremamente apetecível, o pacote completo tem um preço quase proibitivo, pelo que, pode ser extremamente útil para atestar amizades pelo Natal. Não obstante, a melhor das prendas é algo não propriamente material: o regresso das Sleater-Kinney ao activo, algo que os mais optimistas já profetizavam com o fim abrupto das Wild Flag e a saída de Janet Weiss dos The Jicks. O boato confirmou-se, e até há já álbum novo no horizonte, com edição prevista para Janeiro do ano próximo e com título genérico No Cities To Love. Há até um primeiro avanço em formato single, incluído como bónus em Start Together. A julgar pelo aperitivo, será um regresso das Sleater-Kinney a crueza "punkóide" dos primórdios. Portanto, um recomeço, completo que foi o anterior ciclo evolutivo.

"Bury Our Friends" [Sub Pop, 2014]

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Good cover versions #86














TINDERSTICKS - "Here" [Sub Pop, 1995]
[Original: Pavement (1992)] 

Here by Tindersticks on Grooveshark

Percorremos as dezenas de canções espalhadas pela discografia dos Pavement, e dificilmente encontramos qualquer vislumbre de emoção. Stephen Malkmus, o compositor praticamente exclusivo, era demasiado cínico para expressar algo mais que sarcasmo refinado, talvez a receita mais indicada para a cultura acelerada de noventas, pelo menos a julgar pelo estatuto simbólico da banda em relação a essa década. Como não há regra sem excepção, "Here", tema maior do excepcional debute Slanted And Enchanted, é um momento isolado de rara ternura. Apesar da marca registada da letra de sentido dúbio, e recheada de jogos de palavras, a canção desenrola-se numa toada vagarosa, entre a valsa lenta e a canção de embalar.

Bem vistas as coisas, o registo original de "Here" não está assim tão distante do universo dos Tindersticks, ao ponto de estes se apropriarem do tema para uma edição do Sub Pop Singles Club, série histórica da editora de Seattle com outras versões improváveis. Como tal, os britânicos não precisaram de grandes alterações à estrutura original para conseguir aquele efeito de ambiente nocturno que é habitual nas suas canções. As diferenças residem sobretudo nos processos, com uns Pavement filiados no indie-rock canónico a privilegiarem a trindade guitarra-baixo-bateria, enquanto os Tindersticks, na sua demanda de uma pop de câmara, fazem uso sem pudores de uma secção de cordas. Sem esquecer, claro está, as vozes completamente divergentes de Malkmus e Stuart A. Staples: de puto reguila à beira da apneia a do primeiro; arrastada, grave, e precocemente envelhecida a do último. Esta versão de "Here" tem ainda a particularidade de ser, porventura, o último golpe de asa dos Tindersticks, surgidos com uma proposta fresca poucos anos antes, mas em vias de se tornarem chuva-no-molhado com o progressivo polimento da sonoridade própria, cujo principal trunfo era a rugosidade instalada numa pop supostamente "erudita".

domingo, 26 de outubro de 2014

R.I.P.


JACK BRUCE
[1943-2014]

Ontem, sábado dia 25 de Outubro, o Panteão do Rock registou a entrada do músico escocês Jack Bruce. Tinha 71 e pereceu de doença hepática.

Com uma carreira activa ao longo de meio século, o principal papel ocupado por Bruce na História Rock foi como principal vocalista e baixista dos efémeros mas influentes Cream, nos quais coabitava como o guitarrista Eric Clapton e o baterista Ginger Baker. O embrião para esta espécie de super-grupo, imortalizado como o paradigma do power-trio, foram os Powerhouse, um projecto de vida breve que, além de Bruce e outros elementos, incluía Clapton e o vocalista Steve Winwood. Durante escassos dois anos de existência, recheados de convulsões internas, os Cream deixaram registados quatro álbuns. De todos, o destaque obrigatório é para a obra-prima Disraeli Gears (1967), autêntico tratado da fusão blues-rock com psicadelismo em voga à época em que também Jimi Hendrix agitava as mesmas águas.

Depois do fim dos Cream, em 1968, quando o trio entendeu que tinha chegado a um ponto de estagnação criativa, Jack Bruce iniciou uma carreira a solo que rendeu inúmeros álbuns, o último já deste ano. Participou também num número considerável de colaborações, sobretudo afiliadas dos blues, mas também numa vastidão de géneros que vai do jazz à música erudita. Músico com formação clássica, dominava ainda outros instrumentos como o piano ou o violoncelo. No entanto, é como baixista que ficará recordado como um dos mais notáveis e influentes do universo rock.

Sunshine Of Your Love by Cream on Grooveshark
[Reaction, 1967]

White Room by Cream on Grooveshark
[Polydor, 1968]

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Encontro de irmãos
















Não fosse o assomo de quase-sucesso dos The Chills, e certamente os The Clean seria a mais "badalada" banda do vasto património pop da distante Nova Zelândia. Por questões cronológicas, contudo, o estatuto pioneiro assenta melhor nos últimos. Para além da amizade e do respeito mútuo, as duas bandas têm ainda em comum os longos períodos de inactividade. No caso dos The Clean, pelo menos, os hiatos são justificáveis pelas actividades musicais paralelas de qualquer dos seus membros: o guitarrista David Kilgour, o baixista Robert Scott, e o baterista Hamish Kilgour. Foi por um feliz acaso (ou talvez não) que, coincidindo com a recente reedição da indispensável compilação Anthology, ambos os irmãos Kilgour lançaram, praticamente em simultâneo, álbuns em nome próprio.

Com uns quinze dias de antecipação, em pleno Verão, David Kilgour revelou End Times Undone, já o seu oitavo trabalho a solo, e mais um na companhia de The Heavy Eights, colectivo de formação variável composto por músicos amigos disponíveis, consoante as ocasiões. Este é um daqueles discos indie da velha escolha, algo em desuso, que certamente fará as delícias dos saudosistas do romantismo rico em melodia dos australianos The Go-Betweens. É também um registo pródigo em descargas eléctricas, que tanto podem remeter para a distorção dos Velvet Underground como para as cavalgadas imponentes de Neil Young, de onde se conclui ser um disco que aspira a uma certa grandeza.

Quanto a Hamish Kilgour, bastante menos activo no percurso extra-curricular, tem resumido a sua obra fora dos The Clean praticamente ao trabalho nos The Mad Scene. Incrivelmente, e volvidas que estão mais de três décadas desde a estreia nas lides, All Of It And Nothing é o seu primeiro álbum em nome individual. Comparado com o trabalho do irmão, é um disco bastante mais discreto, mas também mais complexo e menos imediato. À superfície, os onze temas do alinhamento, dão primazia a um regime de baixa fidelidade de dominância acústica. São canções toscas, na essência, com uma secura própria de algum Lou Reed, mas que por várias vezes derivam para algo de abstracto que não se detém na catalogação estanque dentro de um género específico.

Portanto, End Times Undone e All Of It And Nothing são manifestações de duas diferentes sensibilidades, libertas da coexistência numa entidade comum. No entanto, quando isoladas certas características de ambas, a combinação talvez não esteja assim tão distante da matriz The Clean: desde a pop rugosa e desengonçada dos primórdios, à serenidade outonal dos tempos mais recentes.

 
 David Kilgour & The Heavy Eights - "Some Things You Don't Get Back" [Merge, 2014]



Hamish Kilgour - "Smile" [Ba Da Bing!, 2014]

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Singles Bar #97










HAPPY MONDAYS
Lazyitis
[Factory, 1989] 



Lazyitis (The One Armed Boxer remix) by Happy Mondays on Grooveshark

Longe de imaginar que se iriam tornar nos porta-estandarte da união de facto da pop com a dance music, no "movimento" que ficou conhecido como Madchester, os ainda obscuros Happy Mondays dos dois primeiros álbuns anunciavam já um corte com o passado da lendária Factory Records. Apesar de ainda não denotarem um espírito hedonista tão vincado como sucederia a posteriori, esse par de discos, e em particular o segundo, possibilitaram um novo fôlego a uma editora com pouco mais para se vangloriar do que as glórias passadas. Com efeito, Bummed (1988) é um daqueles discos que, apesar da recepção inicial refreada, tem merecido uma reavaliação constante em termos de relevância histórica. Contando com Martin Hannett na cadeira de produtor, tem deste um trabalho exemplar, ao nível daquele que prestou para os Joy Division, embora completamente diverso. Assim, se no caso da banda de Ian Curtis Hannett sublimou uma frieza monolítica, com os Happy Mondays proporcionou um caleidoscópio de cores e pontas soltas que nos emerge num estado alucinatório a cada audição.

Não sendo propriamente o disco afecto à dança desenfreada que o frenesim acid house da época proporcionava, Bummed serviu, no entanto, de matéria prima para progressivas contaminações da tendência vigente. Como tal, uns Happy Mondays cada vez mais rendidos às linguagens dançantes sujeitaram vários dos seus temas a remisturas, e com efectivo sucesso. De todas, a mais brilhante será a do tema "Lazyitis", este com descaradas pilhagens a canções de The Beatles, Sly & The Family Stone, e David Essex. Levada a cabo por Paul Oakenfold, quando este já trabalhava na co-produção do festivo e definitivo Pills 'n' Thrills And Bellyaches (1990), a intitulada "One-Armed Boxer Remix" é um autêntico hino ao ócio, bem como a afirmação definitiva do vocalista e letrista Shaun Ryder como o poeta de rua para os novos tempos. Mais do que sublinhar com subtileza o pendor dançante da versão original, a remistura editada em single é na verdade um tema praticamente novo, na medida em que conta com a voz convidada do esquecido Karl Denver, veterano que tinha sido uma lenda country Made in Britain nos idos de sessentas. Dando luta, o velhote, qual percursor de um Mark E. Smith, bate-se de igual para igual com Shaun Ryder numa lenga-lenga rica em calão e onomatopeias surreais. Numa medida inteligente, Oakenfold optou por não incrementar em demasia o teor enérgico da remistura, antes realçando a letra, e com isso fazer de "Lazyitis" não só tema indicado para fim de noite de glória hedonista, como indicativo para o espírito do início da década que se aproximava.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

First exposure #70















DEERS

O espírito C86 anda à solta na capital espanhola. Materializou-se em estilhaços de canções, às vezes com títulos em castelhano embora cantadas no inglês possível, que justificavam uma precária de Phil Spector passada no estúdio com as chicas.

Formação: Ana García Perrote (voz, gtr); Carlotta Cosials (voz, gtr); Ade Martín (bx); Amber Grimbergen (btr)
Origem: Madrid [ES]
Género(s): Indie-Pop, Lo-Fi, Garage-Pop
Influências / Referências: Miaow, Shop Assistants, Vivian Girls, The Velvet Underground, The Shangri-Las, The Crystals

http://deers.bandcamp.com/

 
"Castigadas En El Granero" [Lucky Number, 2014]

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

L'Avventura

















É facto consumado que o espírito indie canónico, difundido originalmente no Reino Unidos há coisa de três décadas, tem actualmente na América do Norte vasta legião de descendentes. Porém, embora menos representado, e porque a quantidade e a qualidade não são sinónimos, é no berço que ainda vão surgindo alguns dos melhores exemplares da prole. Sem desprimor para os excelentes Veronica Falls, e até porque os Belle & Sebastian já pertencem à categoria dos veteranos, sou tentado a atribuir a coroa indie na actualidade aos londrinos Allo Darlin', que por acaso até são dois quartos importados da Austrália. Já na casa dos trintas, esta é gente que entende da poda pop, que fala a mesma língua dos jovenzinhos sensíveis e sonhadores que, tal como Brian Wilson, não foram feitos para estes tempos. Assim tem sido desde a última viragem de década, quando começaram a espalhar pérolas em forma de canção por pequenos formatos e pelos álbuns Allo Darlin' (2010) e Europe (2012). Na melhor linha do "género", são canções ricas em referências, daquelas com que os geeks afins se identificam de imediato, patentes em títulos bestiais como "Henry Rollins Don't Dance" ou "If Loneliness Was Art".

Entre aquele soberbo segundo álbum e o novíssimo We Came From The Same Place algo de importante aconteceu na vida dos Allo Darlin', mais concretamente na da vocalista e escritora de canções Elizabeth Morris, que entretanto casou e trocou Londres pela cidade italiana de Florença. Talvez sejam essas mudanças marcantes que estejam na origem da toada deste terceiro álbum, relativamente mais sisudo, para não dizer mais crescido, e até melancólico, mesmo que a cantora afirme que algumas das onze canções são uma reacção anti-nostalgia. Não sendo propriamente um disco acústico, reduz significativamente a electricidade, trazendo maior visibilidade ao ukelele de Morris e à riqueza melódica das canções, uma vez mais em estado de graça. No entanto, o maior trunfo de todos é mesmo a voz clara e arejada da australiana emigrada, que, sem exibicionismos desnecessários, tem uma franqueza tão próxima quanto a da nossa vizinha do lado, quer cante sobre a inevitabilidade do crescimento, quer verse sobre tolices mundanas. Estas são temáticas intrínsecas a bandas da estirpe cada vez mais escassa dos Allo Darlin', que com We Came From The Same Place proporcionam mais um tratado de simplicidade e esplendor pop, como dificilmente ouviremos em tempos próximos. Portanto, se procuram algo aparatoso, deverão ir bater a outras portas.

[Fortuna Pop!, 2014]

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Mil imagens #52



The Stone Roses - Waterloo, Londres, 1989
[Foto: Tom Sheehan]

A imagem acima foi a da primeira capa dos Stone Roses na imprensa musical, na circunstância no defunto Melody Maker por alturas da edição do histórico álbum de estreia. O buzz já estava criado e, por uma vez, seria inteiramente justificado. Quanto aos Roses, captados pela lente de Tom Sheehan com cerca de um mês de antecedência da edição do disco - isto no tempo em que os discos eram efectivamente "lançados" numa data precisa -, espelham nos rostos a irreverência da sua juventude. Mas também aquela frontalidade arrogante, marca-registada que os acompanhou desde quando ainda não eram mais que a next big thing. No fundo, era o alto nível de auto-confiança de quem está prestes a revelar um dos mais belos capítulos da pop.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Lost in the supermarket















Foto: Noora Lehtovuori

"O fruto clonado é o mais apreciado", é a máxima dos tempos que correm. Com efeito, tem proporções gigantescas a tremenda aceitação que um infindável número de projectos formatados consegue a partir de fórmulas previamente exploradas em linguagens musicais antes "marginais", como o kraut ou o psych. É mesmo impressionante a ingenuidade dos incautos, que caem na batota, como se aquilo que lhes é apresentado, com embrulho acetinado, fosse a mais refinada novidade. Como em todas as tendências, há honrosas excepções que fogem à mediocridade da formatação, no caso em apreço aquelas em que, mais do que decalcar truques, absorve apenas os princípios de um estilo para partir rumo a um infinito de possibilidades. É o caso dos finlandeses Siinai, que a partir de ramificações difusas do kraut, colhem o melhor ensinamento dos rebeldes alemães de setentas: a total liberdade criativa, sem qualquer espécie de preconceitos. Foi sob esta premissa que se estrearam em álbum com Olympic Games (2011), um disco de densos instrumentais que, como o próprio título indica, se inspirava nos jogos com origem na Grécia Antiga.

Igualmente conceptual e instrumental, mas significativamente mais arejado, é o novo e excelente Supermarket, inclusive merecedor de capa ao estilo dos mestres teutónicos. Neste segundo álbum dos Siinai o conceito subjacente é o da actual sociedade de consumo, percorrendo os diferentes momentos de uma ida a uma superfície comercial de grandes dimensões. Porém, até pela total ausência de palavras, não há em Supermarket qualquer juízo de valor condenatório quanto ao acto de comprar, antes pelo contrário, o disco até tem algo de lúdico. Há nos oito temas referências que se pressentem em diferentes momentos, como a pulsão dos Neu!, a deriva espacial dos Tangerine Dream, ou até a propensão épica triunfal de um Vangelis de outras eras. Não obstante a difusão daquelas fontes, os Siinai são donos de uma linguagem muita própria, num disco de inúmeras camadas que exige sucessivas audições para revelar pormenores, como súbitas fanfarras que irrompem das texturas lisérgicas, ou a latência de ritmos afro que surgem do nada. Com estas características, Supermarket poderia muito bem ser a escolha de um programador de "banda sonora de centro comercial" mais ousado, ainda não domado pela ditadura do óbvio. Uma coisa era garantida: o estado transe dos potenciais clientes.

"Shopping Trance" [Splendour, 2014]

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

R.I.P.


STEPHEN SAMUEL GORDON
"THE SPACEAPE"
[?-2014]

Há uma expressão muito batida que diz que as más notícias correm rapidamente, mas que eu desconfio que apenas se aplica a pessoas com estatuto de estrela, mesmo que decadente. Isto porque, não me considerando propriamente um cidadão desinformado, só há algumas horas tive conhecimento da morte de Stephen Samuel Gordon, ocorrida já no passado dia 2, perdida que foi uma longa batalha contra uma forma rara de cancro. Sempre sob o pseudónimo The Spaceape, Gordon era o MC e poeta de serviço na britânica Hyperdub, seguramente a mais relevante editora no espectro da música urbana nos últimos dez anos.

Embora em nome próprio apenas lhe seja creditado o EP de 2012 Xorcism, o nome The Spaceape ganhou notoriedade junto dos mais atentos às novas tendências mais estimulantes com o par de álbuns gravados em parceria com Kode9, alter-ego de Steve Goodman, justamente o fundador da Hyperdub. Além disso, foi requisitado por um número considerável dos actuais estetas sonoros mais badalados, não apenas dentro do circuito do selo londrino, tais como Burial, The Bug, Jerry Dammers, ou Martyn. Salvo informação contrária, a sua voz profunda e as suas ponderações sobre a esquizofrenia do mundo actual foram pela última vez registadas em Killing Season, o novíssimo EP novamente creditado a The Spaceape e ao "patrão" Kode9.

Kode9 & The Spaceape - "The Devil Is A Liar" [Hyperdub, 2014]

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Ao vivo #123

















Dean Blunt (Foto: Vera Marmelo)

Peter Evans Quintet + Fennesz + Dean Blunt @ OUT.FEST 2014 - Casa da Cultura do Barreiro, 03/10/2014

Responsável, de há alguns anos a esta parte, por trazer animação a uma pequena cidade na qual a palavra "crise" é uma assombração desde há décadas, o OUT.FEST é um festival único no panorama nacional no que concerne há representação das diversas franjas da música popular. À semelhança de qualquer outro dos dias do evento (entre 2 e 5 últimos), o programa da passada sexta-feira atesta bem do alheamento dos programadores no tocante aos espartilhos estilísticos. No cartaz, cuja prioridade é abranger um largo espectro de tendências ainda não formatadas segundo os estereótipos do mainstream, também não há qualquer critério de antiguidade das carreiras, pelo que, tanto podemos contar com nomes estabelecidos no segmento leftfield, como com as últimas revelações ainda em estado proto-hipster.

Segundo estas premissas, a ementa da noite da última sexta, com cenário no ambiente kitsch pré-decadente da Casa da Cultura, a ordem dos concertos escalados poderia ser qualquer qualquer uma. Por nenhuma razão em especial, couberam as honras de abertura ao trompetista nova-iorquino Peter Evans, à frente de um quinteto que, além do expectável (contrabaixo, piano, bateria), inclui um operador electrónico que processa em tempo real a performance dos restantes músicos. Se a esta presença insólita acrescentar-mos a informação de que Evans é conhecido pela tendência para o improviso, já vejo alguns narizes a torcerem-se perante a ameaça de uma sessão de "ruído avulso". Porém, desenganem-se os cépticos, pois, não obstante uns lampejos de abstraccionismo, o concerto revela-se algo de bastante harmonioso, lúdico até, e isto sem abusarmos da boa-vontade. Ao longo de dos quase noventa minutos queimados num estalar de dedos, o quinteto é um óptimo entretenimento que percorre diferentes toadas, que tanto podem tanger os ritmos latinos, como o rock mais abrasivo. Cada elemento, mestre no seu ofício, tem direito a solo, destacamdo-se do todo, sem detrimento para os demais, o próprio Peter Evans pela sua incrível capacidade para explorar as potencialidades dos instrumentos (trompete convencional e de bolso), e o baterista guedelhudo, altamente preciso e responsável máximo pelas convulsões abruptas ao longo do concerto.

Bem mais breve foi o austríaco Christian Fennesz, nome de culto na electrónica contemporânea mas que, em boa verdade, é um guitarrista rendido ao processamento electrónico dos arpejos minimalistas. Como tal, apresenta-se numa pouco convencional postura: sozinho em palco, munido de guitarra e laptop. Na bagagem traz o recente Bécs, álbum reminiscente do já clássico Endless Summer (2001), que, portanto, é um contraste harmonioso à deriva abstraccionista dos anteriores trabalhos. Não se limita a reproduzir propriamente as peças daquele disco, embora as ambiências criadas, relativamente mais densas também por força de um som imponente, estejam próximas do clima de Bécs, este mais luminoso. Assim, por mais do que uma vez, sentimos estar na presença dos arremedos espectrais dos cinco Slowdive levados a cabo por um só elemento. É um conceito eficaz nesta brevidade, correndo o risco, se alongado, de se perder na eminência da repetição.

Embora não acrescente novidades significativas à apresentação de há menos de um ano, um concerto de Dean Blunt será sempre motivo de uma fascinante estranheza, sob qualquer óptica e ao fim de um infindável número de repetições da experiência. Toda a encenação teatralizada, a constante tensão latente, a presença imóvel de um segurança em respaldo ao artista, e a simplicidade do jogo de luz (e de longos períodos de escuridão absoluta), são truques simples que adicionam tempero a um espectáculo básico na essência. Tal como tinha acontecido no Teatro Maria Matos, Blunt apresenta uma versão sintetizada do excelente The Redeemer (2013), agora ainda mais reduzida porque também vai sendo hora de avançar com temas do já muito próximo Black Metal. A impressão que fica dos novos temas, que seguem a progressão do artista rumo a uma linguagem mais orgânica, com uma forte presença da guitarra, é que não destoam minimamente do carácter intimista dos restantes, prosseguindo, como tal, no relato confessional e despudorado de trechos do quotidiano sentimental (auto-biográfico ou talvez não). Praticamente conceptual, e sobretudo extremamente coeso, o concerto de Dean Blunt foi capaz, tal como o de Peter Evans antes dele, de arrancar intensos aplausos à mistura com expressões de estupefacção. Devidamente justificados, diga-se.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O jogo das diferenças #32


SHOP ASSISTANTS
Shop Assistants
[Blue Guitar, 1986]

U2
Achtung Baby
[Island, 1991]