"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Há 20 anos era assim #15










SUGAR
File Under: Easy Listening
[Creation, 1994]



Cicatrizadas as feridas da separação tumultuosa dos Hüsker Dü, e após um período sabático dedicado à carreira a solo, Bob Mould estava pronto para nova experiência à frente de uma banda. O momento para o aparecimento dos Sugar (novamente um power-trio), na primeira metade de noventas, não poderia ser o mais ajustado, isto caso a intenção fosse mostrar às novas gerações quem primeiro institui a canção angustiada edificada à custa de guitarras desalinhadas. A iniciativa não poderia revelar-se mais proveitosa, já que tanto o álbum de estreia Copper Blue (1992), como o mini-LP Beaster (1993), recolheram aclamação crítica, com correspondência num número considerável número de vendas. Se o primeiro era a tentativa mais séria de Mould em matéria de canções melódicas, o último, feito de sobras daquele, é um portento de negrume envolto em ruído, apenas vendável no período específico da sua concepção, único no que à aceitação das sonoridades mais agrestes diz respeito.

Aproveitando o balanço do estado de graça, File Under: Easy Listening, muitas vezes com título abreviado para FU:EL, não tardou. Em termos estéticos e de conteúdo temático, este terceiro registo pode ser descrito como a súmula dos dois anteriores, ou seja, com o apelo melódico de Copper Blue e a expiação dos demónios de Beaster. Apesar da deliberada acessibilidade dos dez temas, embalados numa capa com motivos kitsch a condizer, o título escolhido só pode ser visto como irónico, pois a "audição fácil" sugerida apenas deve ser entendida no contexto habitualmente torturado da música de Bob Mould, nunca no todo da música pop/rock, de qualquer era. No entanto, FU:EL até acaba por conter algumas da canções mais imediatas do autor, atestando que Grant Hart não era o único dono do elemento pop dos Hüsker Dü, e Mould o responsável exclusivamente pela abrasão sónica. São os exemplos do irresistível "Your Favorite Thing", do angustiado "What You Want It To Be", ou dos inquietos "Gee Angel" e "I Can't Help You Anymore". O primeiro, em particular, é o paradigma da canção feita à medida das college radios de meados de noventas e, como tal, viu o seu valor reconhecido com significativo airplay. Não obstante a dominância do factor melódico, FU:EL não dispensa alguma da rugosidade característica de Mould, como acontece no inaugural e enérgico "Gift", no denso "Company Book" (escrito e cantado pelo baixista David Barbe), e no contundente "Granny Cool", todos eles ricos em torrentes elípticas de alta voltagem. No pólo oposto, porque de pendor semi-acústico, estão "Panama City Motel", "Explode And Make Up", e "Believe What You're Saying", este com a desolação folky característica de Workbook (1989), o elogiado álbum de estreia a solo na ressaca dos Hüsker Dü.

Cerca de um ano após FU:EL, Bob Mould extinguia os Sugar, agora sem arrufos ou atritos entre os integrantes, apenas por vontade própria e com a certeza do dever cumprido, com uma obra escassa mas sem pontos fracos. A retoma da carreira a solo foi uma prioridade, primeiro com alguma indefinição no rumo a seguir, mas com um fôlego revigorado nos anos mais recentes. Nas muitas aparições pelos palcos desse mundo, o legado dos Sugar é já uma presença assídua nos alinhamentos, sem quaisquer pudores ou complexos de inferioridade quando comparado com o estatuto seminal da obra dos Hüsker Dü.

Gift by Sugar on Grooveshark

Your Favorite Thing by Sugar on Grooveshark

Believe What You're Saying by Sugar on Grooveshark

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Três tipos incríveis















Nunca foram motivo para hypes, muito menos caso para vendas significativas, mas o estatuto dos Shellac como referência incontornável da "porrada sónica" faz do surgimento de cada novo álbum um acontecimento. Afinal de contas, não é algo de frequente, já que, em pouco mais de vinte anos de actividades, os registos de longa-duração ainda se contam pelos dedos de uma mão. Formados na primeira metade de noventas, em plena era do reinado da chinfrineira, dispensaram quaisquer apresentações atendendo ao percurso nas lides dos seus integrantes, em particular o do cabeça-de-lista Steve Albini, afamado pela visceralidade e pela infâmia dos Big Black e dos Rapemen, mas também por constar numa infindável lista de fichas técnicas de discos de outrem. Motivadas pelos longos hiatos de ausência, as elevadas expectativas nem sempre são correspondidas, como aconteceu com o último Excellent Italian Greyound (2007), que afrouxava a agressão em favor de divagações épicas de spoken word que estiveram longe de agradar a toda a gente.

Porém, com o novo e longamente aguardado Dude Incredible repõem-se os níveis de brutalidade de outrora, o que é um bom motivo para justificar a excepção aberta pela Touch and Go Records, que há mais de quatro anos tinha interrompido a edição de novos discos, limitando-se à gestão do invejável catálogo. Antes que os cépticos torçam o nariz perante a eventualidade de estarmos na presença de mais-do-mesmo, esclareça-se que Dude Incredible não é meramente um disco de violência- verbal e sonora - gratuita, mas antes um depuramento da agressão característica na banda. Assim, numa aparente emagrecimento do som, sublima-se a dinâmica dos Shellac, hoje um trio completamente sincronizado nas ideias e intenções. Em turbilhão cacofónico, ou à vez, reforçam-se a  aspereza da guitarra metálica de Albini, a contundência do baixo portentoso de Bob Weston, ou a imprevisibilidade das batidas incríveis de Todd Trainer. Com um acerto impressionante, quer nas convulsões abruptas, quer nas escaladas abrasivas, os Shellac justificam, mais que nunca, o rótulo math-rock que lhes colaram desde o começo.

Dude Incredible by Shellac on Grooveshark
[Touch and Go, 2014]

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Mixtape #29: Summer's Last Sound


[Foto: Stereolab, por Joe Dilworth]

Se estabelecermos um paralelismo entre as estações do ano e as etapas de uma vida, o Verão será aquele período que compreende o fim da adolescência e os primeiros anos da idade adulta. É uma fase de descobertas, da formação de uma personalidade, e da definição do gosto. Tive a sorte que o Verão da minha vida fosse um período propício à descoberta musical, coincidente com aquilo que julgo ser o último suspiro de verdadeira criatividade na música popular. Delimitando a coisa, foi algo que teve lugar sobretudo na primeira metade dos anos noventa do século passado, e que se foi desvanecendo a partir de meados da década, como que anunciando o deserto de ideias que se seguiria. Teve lugar na Grã-Bretanha, à margem das tendências dominantes do grunge, do shoegaze, e dos últimos estilhaços baggy/madchester, e não chegou propriamente a ser uma "cena", atendendo às divergências estéticas entre bandas envolvidas. Assim, consoante os casos, as influências baseavam-se em géneros díspares, e normalmente marginais, como o space-rock, o kraut, o psych, a electrónica, o ambient, o noise/drone, ou até o jazz

Esta nova "cassete" com a marca April Skies pretende representar esta cena-que-não-chegou-a-sê-la, e compõem-se essencialmente de bandas de existência efémera e algo obscura, excepção feita a um par de nomes de culto firmado nos nossos dias. Sigam o link indicado, e arrisquem uma viagem no tempo, com o aviso de que a audição poderá ter efeitos secundários quando acompanhada de qualquer tipo de medicação.


01. DISCO INFERNO - Summer' Last Sound (1992)
02. MOVIETONE - Mono Valley (1995)
03. PRAM - Sleepy Sweet (Edit) (1998)
04. STEREOLAB - Super-Electric (1991)
05. MOONSHAKE - Sweetheart (1993)
06. THE HAIR & SKIN TRADING COMPANY - Torque (1992)
07. TH' FAITH HEALERS - This Time (1992)
08. PROLAPSE - Hungarian Suicide Song (1995)
09. LOOP - Afterglow (1990)
10. APPLIANCE - Ursa Major (1998)
11. SPIRITUALIZED - Anyway That You Want Me (Remix) (1990)
12. SEEFEEL - Polyfusion (1993)
13. FLYING SAUCER ATTACK - My Dreaming Hill (1994)
14. QUICKSPACE - Standard 8 (1995)
15. BARK PSYCHOSIS - I Know (1990)
16. THE BETA BAND - Dry The Rain (1997)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Lady sings soul















Na América, berço natural da coisa, a soul de corte clássico é, normalmente, sinónimo de nostalgia de tempos que já lá vão. Já na Grã-Bretanha, onde tem mantido adeptos várias décadas depois do período áureo, tem contaminado as propostas mais sofisticadas da pop dos últimos mais de trinta anos. É nesto limbo, entre a tradição e a modernidade, que surgiu o projecto Lady, justamente encabeçado por cantoras originárias dos dois lados separados pelo Atlântico: a americana Nicole Wray e a a inglesa Terri Walker. A primeira foi, aos 17 anos e na recta final de noventas, a contratação inaugural da editora criada por Missy Elliott, mas acabou por se ofuscar como mera cantora a soldo; enquanto a última obteve, há mais de uma década, boa recepção ao álbum de estreia, mas que não teve continuidade nos registos posteriores. Portanto, ambas alinharam já pelas tendências mais modernaças da música negra, mas renderam-se à soul de travo retro, acrescentando alguma juventude a um universo hoje quase exclusivo de gente de revelação em idade avançada.

Foi com tal propósito que gravaram um álbum homónimo, já com um ano e meio de vida e que ficou todo este tempo, imerecidamente, à espera de ser devidamente escutado. Lady, o disco, é um belíssimo conjunto de canções que transpiram charme à custa da harmonia de duas óptimas vozes. De uma inflexão pop que outrora foi comum às Supremes ou a Martha & The Vandellas, contrasta com a seriedade das novas "estrelas" anciãs da soul, que, normalmente, expõem em canções as cicatrizes de uma vida árdua. No balanço descontraído registam-se alguns pontos de contacto com Amy Winehouse, embora, como se supõe, a abordagem das Lady nada tenha do dramatismo imposto pelo cunho pessoal das canções daquela. Acrescentem-se ainda umas pinceladas de funk-disco, bem como alguns ecos do moderno R&B, tudo devidamente condimentado com extremo bom-gosto. Portanto, não apenas um disco de soul nostálgica stricto sensu, Lady é um disco no qual confluem de diferentes tendências "negras" com uma elegância que já não abunda. A parte má da história é que as mesmas protagonistas não repetirão a gracinha, pois, entretanto, a metade britânica abandonou o barco, deixando as Lady reduzidas a Nicole Wray, devidamente acompanhada de músicos e cantoras de suporte.

If You Wanna Be My Man by Lady A on Grooveshark
[Truth & Soul, 2013]

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

R.I.P.



ROBERT YOUNG
[1964-2014]

A notícia só foi tornada pública nas primeiras horas de hoje mas, aparentemente, já data da passada terça-feira a morte, de causas ainda desconhecidas, de Robert Young, antigo guitarrista dos escoceses Primal Scream, que fundou juntamente com Bobby Gillespie há mais de três décadas. Alcunhado de Throb pelos seus companheiros, Young militou desde a fase embrionária em 1982 até 2006 na banda que, a partir da emulação dos seus ídolos, e com constantes reinvenções, influenciou, como poucas, sucessivas novas gerações no último quarto de século. No total, gravou com os Primal Scream qualquer coisa como oito álbuns.

Na realidade, o papel inicial de Robert Young era o de baixista, condição que exerceu no par de singles iniciais para a Creation Records e no álbum de estreia Sonic Flower Groove (1987), quando os Primal Scream ainda eram uns putos obcecados pelos Byrds, dificilmente diferenciáveis de milhentas bandas do contingente indie britânico de então. Por alturas do segundo longa-duração (Primal Scream, de 1989), transitou para a guitarra, num disco que apresenta uma considerável dureza rock mais do seu agrado, mas que não deixa saudades. A sorte mudaria com o excepcional Screamadelica (1991), ponte entre o útimo fôlego acid-house e a década do renascimento do rock que marcaria o resto dos 1990s. Curiosamente, o ponto de partida do álbum que mudaria a sorte dos Primal Scream foi o tema "Loaded", no fundo uma remistura de "I'm Losing More Than I'll Ever Have", tema do álbum anterior com um papel preponderante de Young. Sentiu-se novamente como peixe na água no desequilibrado Give Out But Don't Give Up (1994), nova inflexão ao rock de inspiração stonesy. No entanto, não torceu o nariz às experimentações levadas a cabo no celebrado Vanishing Point, trabalho em que o electrónica, o dub, e o kraut são matérias exploradas. Tal exploração conheceu novos desenvolvimentos no incendiário XTRMNTR (2000), que foi o último álbum da história da Creation, e no aceitável Evil Heat (2002), ambos com a trabalho de guitarra "tratado" pelo mestre Kevin Shields, então ainda no longo período sabático dos My Bloody Valentine. Young despediu-se das lidescom Riot City Blues (2006), apenas um disco mediano com o travo rock da sua predilecção.

Depois de abandonar a afamada vida boémia da sua banda de sempre, Robert Young afastou-se da música e dedicou-se essencialmente ao papel de pai e marido. Apesar do afastamento, Throb não foi esquecido pelos seus pares, de dentro e de fora dos Primal Scream, que ao longo de todo o dia lhe dispensaram sentidas e bonitas mensagens de homenagem.

Gentle Tuesday by Primal Scream on Grooveshark
[Elevation, 1987] 

I'm Losing More Than I'll Ever Have by Primal Scream on Grooveshark
[Creation, 1989]

Loaded by Primal Scream on Grooveshark
[Creation, 1990]

Kowalski by Primal Scream on Grooveshark
[Creation, 1997]

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Singles Bar #96










WRECKLESS ERIC
Whole Wide World
[Stiff, 1977]



Whole Wide World by Wreckless Eric on Grooveshark

Sede oficiosa da descendência pub-rock, a Stiff Records foi, a bem dizer, um poiso de aves raras no contexto punk/new-wave. Assim, só na classe de '77, o catálogo da editora londrina incluía a diversão dos The Damned, a sobriedade de Nick Lowe, a irreverência de Ian Dury & The Blockeads, e a neurose interventiva de Elvis Costello. No entanto, talvez a maior ave rara de todas fosse Wreckless Eric, nascido Eric Goulden, com o viço da juventude daquele último, mas com outra capacidade para ser interlocutor directo junto dos seus semelhantes. Escritor de canções de manifestação precoce, anunciava-se como a potencial estrela da Stiff, algo que esteve longe de concretizar-se em virtude de a embriaguez das canções e dos palcos ter passado a ser uma constante na "vida real". Eric ficou, portanto longe do estrelato, ofuscando-se até ao ponto de os seus sucessivos discos progressivamente mais escassos não irem além da devoção de um punhado de devotos. 

E a história até podia ter sido bem diferente, como o levava a crer "Whole Wide World", a magistral canção com que se apresentou ao mundo. É um clássico instantâneo de uma época pródiga em tais espécimes, mas, mais que isso, é um clássico de qualquer era, uma canção exemplar com o código rock'n'roll nos genes, mas contaminada pelo germe punk. Alegadamente escrita ainda nos teens de Eric, "Whole Wide World" é um grito de angst juvenil, com uma simplicidade alarmante, mas com as palavras mais adequadas para expressar uma urgência incontrolada. Resumindo a coisa, é a velha história do adolescente descrente na possibilidade de encontrar a miúda certa, mas em simultâneo capaz de percorrer este mundo e outro em busca do amor idealizado. Algum do mérito da eficácia desta canção deverá ser repartido com Nick Lowe, à época produtor quase exclusivo das edições da Stiff, mas também responsável pela guitarra e outros instrumentos, bem como pelo minimalismo de "While Wide World", sublimado na explosão juvenil do refrão. Depois disto, Wreckless Eric praticamente não saiu da casa de partida, quanto mais correr o mundo na perseguição da quimera do sucesso. No entanto, esta espécie de romantismo boémio deixou descendência em muita da música intrinsecamente britânica subsequente. Entre os filhos bastardos conta-se Pete Doherty, nos seus vários projectos, ele que muitas vezes se inspirou tanto na música como na modo de vida de Wreckless Eric.

domingo, 7 de setembro de 2014

The sun ain't gonna shine anymore

















Foto: Clas-Olav Slotte

Há coisa de um quarto de século, quando a Sub Pop Records era sinónimo das manifestações ruidosas do underground americano que ficaram rotuladas de grunge (seja lá o que isso for), estaríamos longe de imaginar que a editora de Seattle abrangeria a amálgama de tendências que é o actual catálogo. A bem dizer, nesses tempos, o cardápio era composto basicamente por prata da casa, pelo que, não se sonhava sequer a expansão a artistas além-fronteiras. Muito menos a jovens artistas negras, da longínqua Finlândia, mas com origens etíopes. A artista em causa chama-se Mirel Wagner, e há uns três anos lançou um disco homónimo surpreendente, um concentrado de negrume impensável para a juventude dos seus vinte e três anos. Apesar de essência acústica e dos parcos recursos, Mirel Wagner era um disco de uma crueza brutal, de um intenso cheiro a morte e a terra queimada.

Se aquele registo teve inicialmente apenas edição local, criou um burburinho suficiente para chamar a atenção das gentes da Sub Pop, responsável pela edição do novo e bastante recomendável When The Cellar Children See The Light Of Day. Pelo título sugestivo já se percebeu que o ambiente do novo álbum é igualmente carregado, sendo também mantida a inspiração de Mirel Wagner nos blues do Delta. Registam-se, contudo, diferenças significativas na produção, agora mais depurada, o que não belisca a simplicidade destas dez canções tenebrosas feitas basicamente de voz e guitarra. Assim, percorremos histórias miseráveis que incluem crianças mortas, atracções ardentes pelo Diabo, amores trágicos e, eventualmente numa evocação das origens da autora, relatos de fome extrema. Obviamente que, por motivos diferentes, há aqui pontos de contacto com a obra de Nina Nastasia, ou até com o passado de Polly Jean Harvey. No entanto, nunca a primeira mergulhou em trevas tão densas, nem a última foi tão contida nos recursos. Digamos antes que as principais referências de When The Cellar Children... extravasam o contexto musical, situando-se próximas das histórias macabras do american gothic que povoam boa parte da obra literária do genial Cormac McCarthy. Porém, se este é um conhecedor próximo do submundo de miséria que relata, Mirel Wagner tem um distanciamento geográfico desta realidade que, certamente, está na base da aura de mistério que ensombra todo o disco. É precisamente nesse ponto que reside boa parte do fascínio mórbido gerado por When The Cellar Children See The Light Of Day.

 
"The Dirt" [Sub Pop, 2014]

sábado, 6 de setembro de 2014

First exposure #69

















Foto: Paul Hughes

EIGHT ROUNDS RAPID

Mais cedo ou mais tarde, a máquina do tempo da retromania tinha de ir parar à Inglaterra rude e hiper-realista envolvente do punk, com ironia cáustica e descendência biológica de Wilko Johnson incluídas.

Formação: David Alexander (voz); Simon Johnson (gtr); Jules Cooper (bx); Lee Watkins (btr)
Origem: Southend-on-Sea, Inglaterra [UK]
Género(s): Pub-Rock, Indie-Rock, Punk-Rock, Rock'n'Roll
Influências / Referências: Dr. Feelgood, Ian Dury & The Blockeads, Art Brut, Alternative Television, Wire, Sleaford Mods, The Fall

 
"Talent" [Cadiz, 2014]

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Um homem-insecto na cidade
















Seguramente ainda desconhecido de uma imensa maioria, o britânico Kevin Martin já deveria dispensar apresentações. Desde que chegou a Londres, há um quarto de século, envolveu-se em projectos, obscuros mas seminais, como GOD, Techno Animal, ou Ice, que abordavam livremente linguagens díspares e marginais como o jazz, o grindcore, o hip-hop, o industrial, ou o ambient. Em todos eles teve como parceiro preferencial Justin Broadrick, também este um reconhecido explorador das potencialidades de um estúdio. O melhor, porém, estaria para vir quando Martin se apresentou como The Bug, projecto pessoal que tem contado com a marca própria de uma infindável lista de convidados. Em matéria de álbuns, a aventura, que se tem debruçado sobre as tensões da sociedade actual, iniciou-se com Pressure (2003) e atingiu o zénite com o superlativo London Zoo (2008), discos que exploravam com eficácia a contundência da pulsão do baixo e a desfocagem dub, numa recontextualização das profecias de uns Public Image Ltd. para a actualidade. Aquele último, reflexo da paranóia da grande cidade com cenário na urbe londrina, mas ajustável a qualquer outra metrópole do mundo moderno, é justamente um clássico imediato da música urbana.

Foram precisos seis anos para que se completasse o tríptico, o que sucede com o novíssimo Angels & Devils. A propósito da atmosfera deste, disse Kevin Martin que, ao contrário da maioria, o avançar da idade não o tem tornado mais sensato, antes mais irado. Eu acrescentaria que está também mais subtil na expressão da ira, neste disco de duas caras, a fazer justiça à dualidade do título. Assim, a afronta fica concentrada na segunda metade do alinhamento, quando toda a tensão contida até aí se liberta com estrondo. Neste segmento abordam-se temáticas como o sexismo, o estupro, o assédio, e as mais variadas formas de violência que já são lugar-comum no nosso quotidiano. O tempo de antena é concedido, entre outros, ao noise-hop atonal dos Death Grips no ofensivo "Fuck A Bitch", com resposta na mesma moeda pela voz de Warrior Queen no ragga disfuncional de "Fuck You". No entanto, apesar da frontalidade de ambos aqueles temas, nenhum é tão perturbador como o saturado e sinistro "Fat Mac", com a ameaça voz de Flowdan (MC ligado aos percursores grime Roll Deep) a atingir níveis elevados de malvadez. Por contraste, a primeira metade de Angels & Devils, não se caracterizando propriamente por uma atmosfera idílica, é pelo menos bastante mais amistosa. Para tal, contribuem tanto os instrumentais meditativos de Kevin "The Bug" Martin, como as diferentes pinceladas de pacificação trazidas pelos convidados: a contemplativa Liz Harris, a.k.a. Grouper; a enigmática Inga Copeland; a espirituosa Miss Reed; e o redentor Gonjasufi no delicioso, embora algo desfocado, "Save Me". 

Com um conceito mais difuso do que o habitual, que tanto pode ser entendido como a atracção dos opostos, como a bipolaridade latente que existe em todos e em cada um em específico, The Bug conseguiu com Angels & Devils o seu trabalho mais ecléctico, mas também o mais facilmente assimilável. Inteligibilidade de conceitos à parte, é mais um álbum soberbo que só valoriza uma discografia ímpar. Agora é esperar que a suposta acessibilidade inspire mais gente a explorar o par de complementos e, quiçá, faça cair alguns preconceitos relativamente ao que de mais estimulante se vai fazendo na música urbana actual.

[Ninja Tune, 2014]

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Alvvays the sun















Foto: Gavin Keen

Desculpem a insistência, mas hoje voltamos a registar a proximidade do esgotamento da fórmula dos recuperadores da sonoridade C86. Para os mais distraídos, refira-se que aqui se fala daquela tendência, com uma meia dúzia de anos, para as jovens bandas indie americanas soarem às congéneres britânicas de há um quarto de século. Neste, como em qualquer "fenómeno" de maiores ou menores dimensões, o declínio verifica-se tanto pela progressiva falta de qualidade das novas apostas, como pela gradual falta de inspiração dos nomes firmados. A título de exemplo refiram-se The Pains of Being at Heart, que nos iludiram apenas com um álbum, ou Dum Dum Girls, cuja ambição da mentora em chegar às massas tem sacrificado os princípios iniciais em prol do imediatismo do óbvio. Lamentavelmente, já cá não andam as Vivian Girls que, por acaso, estiveram na génese da coisa e despediram-se sem mácula.

É neste contexto, próximo da descrença, que têm de ser recebidos de braços abertos os canadianos Alvvays (leia-se "always"), autores de um primeiro álbum homónimo que é das coisas mais estimulantes dentro do género que surgiram nos tempos mais recentes. Quando se escuta Alvvays, o disco com dedo de velhas raposas como Chad VanGaalen (produção) e John Agnello (mistura), é inevitável não estabelecer comparações com gente como Best Coast ou Bleached, quanto mais não seja para assinalar que a banda de Toronto tem de suposta ingenuidade o que àquelas sobra em atrevimento. Estão, portanto, no campo de acção de uns Magnetic Fields de outrora, ou de uns Camera Obscura de sempre, as belíssimas canções saídas da pena da cantora Molly Rankin, ela que é rebento de integrantes do colectivo folk The Rankin Family. Situando as coordenadas num passado mais distante, há nos Alvvays um sentido pop resgatado dos Teenage Fanclub da fase intermédia, ou o travo retro, muitas vezes surfy, dos subvalorizados The Primtives. Porém, mais do que uma amálgama de referências facilmente reconhecíveis, estas são canções em pleno estado de graça pop que valem por si, com o inevitável reverb spectoriano, e as bem equilibradas doses de melancolia tola juvenil e de luminosidade estival. São apenas nove, mas as bastantes para que possam eleger Alvvays a banda sonora do (muito) que ainda resta deste Verão.

 
"Archie, Marry Me" [Polyvinyl, 2014]