"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Um homem-insecto na cidade
















Seguramente ainda desconhecido de uma imensa maioria, o britânico Kevin Martin já deveria dispensar apresentações. Desde que chegou a Londres, há um quarto de século, envolveu-se em projectos, obscuros mas seminais, como GOD, Techno Animal, ou Ice, que abordavam livremente linguagens díspares e marginais como o jazz, o grindcore, o hip-hop, o industrial, ou o ambient. Em todos eles teve como parceiro preferencial Justin Broadrick, também este um reconhecido explorador das potencialidades de um estúdio. O melhor, porém, estaria para vir quando Martin se apresentou como The Bug, projecto pessoal que tem contado com a marca própria de uma infindável lista de convidados. Em matéria de álbuns, a aventura, que se tem debruçado sobre as tensões da sociedade actual, iniciou-se com Pressure (2003) e atingiu o zénite com o superlativo London Zoo (2008), discos que exploravam com eficácia a contundência da pulsão do baixo e a desfocagem dub, numa recontextualização das profecias de uns Public Image Ltd. para a actualidade. Aquele último, reflexo da paranóia da grande cidade com cenário na urbe londrina, mas ajustável a qualquer outra metrópole do mundo moderno, é justamente um clássico imediato da música urbana.

Foram precisos seis anos para que se completasse o tríptico, o que sucede com o novíssimo Angels & Devils. A propósito da atmosfera deste, disse Kevin Martin que, ao contrário da maioria, o avançar da idade não o tem tornado mais sensato, antes mais irado. Eu acrescentaria que está também mais subtil na expressão da ira, neste disco de duas caras, a fazer justiça à dualidade do título. Assim, a afronta fica concentrada na segunda metade do alinhamento, quando toda a tensão contida até aí se liberta com estrondo. Neste segmento abordam-se temáticas como o sexismo, o estupro, o assédio, e as mais variadas formas de violência que já são lugar-comum no nosso quotidiano. O tempo de antena é concedido, entre outros, ao noise-hop atonal dos Death Grips no ofensivo "Fuck A Bitch", com resposta na mesma moeda pela voz de Warrior Queen no ragga disfuncional de "Fuck You". No entanto, apesar da frontalidade de ambos aqueles temas, nenhum é tão perturbador como o saturado e sinistro "Fat Mac", com a ameaça voz de Flowdan (MC ligado aos percursores grime Roll Deep) a atingir níveis elevados de malvadez. Por contraste, a primeira metade de Angels & Devils, não se caracterizando propriamente por uma atmosfera idílica, é pelo menos bastante mais amistosa. Para tal, contribuem tanto os instrumentais meditativos de Kevin "The Bug" Martin, como as diferentes pinceladas de pacificação trazidas pelos convidados: a contemplativa Liz Harris, a.k.a. Grouper; a enigmática Inga Copeland; a espirituosa Miss Reed; e o redentor Gonjasufi no delicioso, embora algo desfocado, "Save Me". 

Com um conceito mais difuso do que o habitual, que tanto pode ser entendido como a atracção dos opostos, como a bipolaridade latente que existe em todos e em cada um em específico, The Bug conseguiu com Angels & Devils o seu trabalho mais ecléctico, mas também o mais facilmente assimilável. Inteligibilidade de conceitos à parte, é mais um álbum soberbo que só valoriza uma discografia ímpar. Agora é esperar que a suposta acessibilidade inspire mais gente a explorar o par de complementos e, quiçá, faça cair alguns preconceitos relativamente ao que de mais estimulante se vai fazendo na música urbana actual.

[Ninja Tune, 2014]

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