"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

R.I.P.



JIMMY RUFFIN
[1936-2014]

Ao fim de um período de saúde francamente debilitada, a voz de Jimmy Ruffin calou-se para sempre na passada segunda-feira, dia 17. O desaparecimento acontece precisamente na altura em que se falava da preparação de um novo álbum de regresso, que certamente beneficiaria do recente renascimento do interesse pelas sonoridades soul da velha escola.

Quando comparado com as grandes lendas do género, temos de reconhecer que Jimmy Ruffin, que até nem era uma sobredotado em termos vocais, é apenas uma figura menor. Efectivamente, passou uma boa parte da carreira como cantor de sessão na fábrica de hits da Tamla Motown, e era habitualmente secundarizado em relação a David Ruffin, o irmão mais novo que integrou os Temptations da fase dourada. No entanto, Jimmy não deixou de, ele próprio, sentir o sabor doce do sucesso na recta final de sessentas com uns quantos singles como "I've Passed This Way Before", "Don't Miss Me A Little Bit Baby", e - o mais memorável de todos - "What Becomes Of The Brokenhearted?". Em qualquer deles, e por oposição à ligeireza da maioria dos hits do novo "som da América jovem", abordava temáticas mais sombrias; a carência de mestria vocal era compensada pela paixão que imprimia a cada interpretação. Homem de uma sobriedade rara numa época de excessos, e possuído por uma forte consciência social, Jimmy Ruffin era normalmente conhecido como a voz da classe operária de Detroit, cidade berço da Motown e cenário de inúmeras convulsões sociais ao longo de décadas.

Incapaz de manter acesa a chama do sucesso, talvez pela inadaptação aos desenvolvimentos da música negra, desligou-se da Motown em meados de setentas, chegou a militar pela "rival" Chess Records, e passou a dedicar-se quase em exclusivo ao público britânico. Em inícios da década seguinte passou, inclusive, a viver no Reino Unido, onde reencontrou o sucesso comercial com uma roupagem disco-soul. Foi também aí que, a reboque da chamada "nova pop", com uma forte componente soul, colaborou com gente como os Heaven 17 e Paul Weller. Com este último, igualmente um empenhado das causas da classe operária, e à época líder dos estilosos The Style Council, gravou o tema "Soul Deep", inicialmente creditado a The Council Collective, e um gesto de solidariedade com as famílias dos mineiros envolvidos na propalada greve de 1984-85, no auge do thatcherismo.

What Becomes of the Brokenhearted by Jimmy Ruffin on Grooveshark
[Tamla Motown, 1967]

Hold On (To My Love) by Jimmy Ruffin on Grooveshark
[RSO, 1980]

Soul Deep (Single) by The Style Council on Grooveshark
[Polydor, 1984]

Foolish Thing to Do by Heaven 17 on Grooveshark
[Virgin, 1986]

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Mil imagens #53



Nirvana - Parque del Retiro, Madrid, 1992
[Foto: Steve Double]

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Equally cursed and blessed


Foto: Tom Sheehan

Para além da excelência da obra discográfica, uma das principais características das melhores bandas é a escolha do momento para sair de cena, ainda que temporariamente, antes que a decadência assome. Esses são ambos predicados dos britânicos The Coral, que estão presentemente em banho-maria e por tempo indeterminado, enquanto os seus elementos se dedicam a projectos pessoais. Os atributos desta malta era já algo reconhecível aquando da edição do homónimo álbum de estreia, em 2002, mal tinham os rapazes saído da adolescência. Em plena vigência do chamado "novo rock", demasiado estilizado segundo conceitos post-punk facilmente reconhecíveis, os The Coral distinguiam-se por ir beber a fontes difusas de sessentas, algo inesperadas em gente tão jovem: dos Love a Captain Beefheart, dos Byrds a Morricone. Vários outros discos se seguiram, pejados de referências marítimas, na melhor tradição de Liverpool e arredores (Echo & The Bunnymen, The La's, Shack), num seguro e notável processo de crescimento que os fez, muito provavelmente, a banda pop/rock mais consistente deste novo século. A ter de indicar um ápice em tão equilibrada carreira, aponto para The Invisible Invasion (2005), produzido por Geoff Barrow e Adrian Utley, e no qual os The Coral procuraram nos músicos dos Portishead o apoio para consumar um depuramento da sua sonoridade.

O agrado da banda com o resultado daquele quarto álbum foi ao ponto de partir de imediato para estúdio, acompanhada da mesma dupla de produtores e com o intuito de registar um sucessor que obedecesse às mesmas premissas. Porém, os temas que ficaram registados foram então abandonados, alegadamente porque os The Coral temeram a repetição de uma fórmula em discos sucessivos. Alguns anos volvidos, uma dúzia dessas novas-velhas canções vê finalmente a luz do dia no recente The Curse Of Love, álbum que, na pior das hipóteses, serviria para matar uma sede de novidades que dura já desde 2010. No entanto, depois de o ouvir, rapidamente chegamos à conclusão de que este é muito mais do que um álbum que sirva apenas para evitar o esquecimento durante o hiato, evidência de que as "sobras" dos The Coral devem fazer inveja à obra "regular" de muita boa gente. Refira-se que o propósito inicial é conseguido, já que The Curse Of Love é o disco mais "despido" da banda, e também o de atmosferas mais densas. No entanto, essa densidade não descai para a gravidade exacerbada, já que é devidamente contra-balançada pelo sentido melódico habitual. Óptimo exemplo da dicotomia up/down são as duas versões do tema-título, que abrem e encerram o álbum: a primeira, e definitiva, num registo sea shanty funéreo; a última, e em estado primário, é uma espécie de valsa relativamente arejada. Pelo meio, a dezena de temas restante joga nesta duplicidade, com uma simplicidade assinalável, mas que deixa a nu a riqueza melódica intrínseca de qualquer canção dos The Coral. Por último, é de referir o desempenho da voz amadurecida de James Skelly, num registo bastante próximo da referência Ian McCulloch dos melhores dias, e tal como este a sublinhar o romantismo da gente jovem que carrega o peso do mundo sobre os ombros.


[Skeleton Key, 2014]

sábado, 15 de novembro de 2014

Singles Bar #98










PLUSH
Three-Quarters Blind Eyes
[Drag City, 1994]



Liam Hayes não é propriamente um nome que soe familiar às massas, até porque costuma gravar sob o pseudónimo Plush. No entanto, este aficionado do perfeccionismo que escolheu uma carreira à margem da fama é um dos grandes artesãos da pop de câmara/orquestral/barroca dos nossos tempos, um digno herdeiro tanto de Burt Bacharach como de Brian Wilson. Originário da mesma ebulição de Chicago de inícios de noventas que gerou também Jim O'Rourke, Hayes contrasta em actividade com aquele músico hiper-produtivo: em duas décadas contam-se apenas três álbuns sob a chancela Plush, mas qualquer um deles objecto de culto por parte de qualquer amante da mais pura pop intemporal. Se é opção ou complexo de perfeição desconhece-se, mas é certo que a irregularidade temporal das suas edições são o principal motivo de uma projecção diminuta.

No entanto, ainda que se tivesse eclipsado para a eternidade, bastaria a Liam Hayes a primeira edição discográfica, e aquela que deixou o meio mundo atento à novidade de sobreaviso, para constar dos manuais pop. Lançado numa época em que o rock agreste massificado media forças em protagonismo com o bom momento da música de dança, pré-vulgarização, Three-Quarters Blind Eyes é apenas um single, mas uma pedrada no charco do marasmo eminente. Curiosamente, a excepcional canção que é tema-título não se insere propriamente no registo orquestrado que deu nome ao projecto Plush. Saído da pena de alguém que à época era próximo de um tal Will Oldham, chegando inclusive a colaborar em discos lançados sob as diferentes variações Palace, "Three-Quarters Blind Eyes" é um tema inserido naquele compartimento difuso em que o americana se deixa contaminar por décadas de cultura pop. Simplificando, digamos que é um tema de cantautor, registado com recursos mínimos, até com alguma rispidez, mas talvez por isso imortalizado com a pureza que só as canções no seu estado primário possuem. Já no lado B, o tema "Found A Baby" é o primeiro assomo dos propósitos estéticos de Hayes. Fabulosa lullaby de uma beleza imaculada, que o espírito sonhador de Brian Wilson poderia ter gerado, esta é uma canção que contrasta a simplicidade da estrutura com a opulência dos elementos (arranjos de cordas, sopros), porém com uma gestão discreta dentro das fronteiras de um extremo bom-gosto.

Depois das altas expectativas criadas por esta aparição, foi preciso esperar quatro anos por More You Becomes You, o primeiro e belíssimo álbum de Plush que pecou apenas por tardio, porque lançado numa época em que o formato "canção" era moeda em desuso. Outros dois se seguiram, com semelhantes hiatos de tempo a separá-los, perante a indiferença generalizada, mas directos ao coração daqueles que ainda privilegiam a mestria pop a qualquer tendência passageira.

Three-Quarters Blind Eyes by Plush on Grooveshark

Found A Little Baby by Plush on Grooveshark

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Paint it, black
















Penso que já antes o tínhamos afirmado, mas nunca é demais repeti-lo, para que não restem dúvidas: o génio (ainda) pouco reconhecido de Dean Blunt já não se circunscreve ao universo "electrónico", nem mesmo se detém no conceito vasto de "música urbana". A mutabilidade inconformista já se pressentia nos tempos do projecto Hype Williams, dividido com Inga Copeland, caracterizado por uma electrónica leftfield difícil de arrumar em qualquer subespécie. Apesar disso, talvez nada nos tivesse preparado para The Redeemer, o fabuloso álbum de catarse em nome próprio do ano passado, e para sua abordagem avant-soul narcótica que recuperava os últimos resquícios da colaboração com Copeland. Neste, e no complementar Stone Island, concebido numa única noite passada em Moscovo e distribuído gratuitamente on-line, despontava nova companhia feminina.

De sua graça Joanne Robertson, a moça assume papel de grande destaque no novíssimo Black Metal, disco que concretiza a redenção que o antecessor apenas prometia. Antes de partirmos para a dissecação desta nova mutação estilística de Dean Blunt, convém tentar compreender os porquês de tão insólito título. Bem, mesmo que com a difusão de conceitos do artista em causa nada possa ser dado como garantido, uma atenção ao conteúdo de Black Metal poderá justificar a escolha como uma tentativa de Blunt se tentar libertar da compartimentação da sua música baseada em critérios de coloração da pele. O sucesso desta tentativa pode ser aferida na primeira parte do disco, uma meia dúzia de temas num registo indie-art-pop, nos quais a guitarra de Joanne Robertson tem presença tão ou mais considerável que a sua voz, esta cristalina e em contraste com o crooning do "mestre". A escolha de samples de Big Star e The Pastels num par de faixas diz muito das "sensibilidades brancas" presentes. Ambos os temas ("LUSH" e "100", respectivamente) têm ainda a particularidade de derrubar barreiras entre a pilhagem ostensiva e a criação de algo novo, matéria em que Dean Blunt tem dado lições. Com a separação por conta do longo e cinemático "FOREVER", entramos na segunda metade do álbum e aqui talvez tenhamos de justificar o negrume com o incremento da tensão latente, ou não fosse este um trabalho de alguém que já nos habituou a uma certa bipolaridade, estética e lírica. Neste segmento final de Black Metal, substancialmente menos orgânico, a esquizofrenia é um dado adquirido, com a sucessão de temas avulsos que tanto podem tanger o hip-hop como o ambientalismo nocturno, ou até não passarem de devaneios abstractos. Ultrapassado o ligeiro desnorte das primeiras audições, e unidas as pontas, Black Metal revela-se mais um fascinante produto da constante inquietação dos nossos dias, não muito diferente daquela dos tempos de um tal tricky kid há quase duas décadas.

 
"MERSH" [Rough Trade, 2014]

domingo, 9 de novembro de 2014

O jogo das diferenças #33


FERRANTE & TEICHER
Keyboard Kapers
[United Artists, 1963]

PAVEMENT
Slanted And Enchanted
[Matador, 1992]

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Sound affections


Foto: Neil "Twink" Tinning

Com relativa justeza, aos Buzzcocks é normalmente atribuído o epíteto de punk Beatles, pela sua capacidade de urdir canções curtas de um imediatismo efectivo. Para comprovar o mérito de tal atribuição, basta passar os ouvidos pela compilação Singles Going Steady, de 1979, seguramente uma das melhores edições do género. Mais pela qualidade que pela quantidade, os norte-irlandeses The Undertones também poderiam ser um sérios candidatos a tal título. No entanto, tanto no caso destes como no dos mancunianos, o paralelismo com os fab four tem de ser estabelecido apenas com a fase formativa, pré-Rubber Soul. Se avançarmos para o "período crescido" dos de Liverpool, muito provavelmente, a comparação com as bandas saídas do turbilhão punk apenas poderá ser com o trio do guitarrista/vocalista e compositor quase exclusivo Paul Weller, do baixista Bruce Foxton, e do baterista Rick Buckler

Bem, antes que se torçam os narizes, esclareço que catalogar os The Jam como punk é resumi-los ao primeiro par de álbuns, da meia dúzia que lançaram noutros tantos anos com selo da multinacional Polydor. Quando implodiram, no apogeu da fama, eram já uma banda radicalmente diferente. Nesta fase, refira-se, a aceitação das massas contrastava com a rejeição dos seguidores dos primórdios, demasiado cegos por um fundamentalismo que não aceitava o crescente interesse do trio, e em especial de Paul Weller, pela música negra. O próprio frontman terá pressentido que a mutação entretanto operada já não encaixava na entidade The Jam, pôs fim à banda e formou The Style Council, estes totalmente livres para flirtar com a soul, com o jazz, ou com a bossanova, numa das mais belas aventuras da facção sofisticada da pop. Não obstante alguma incompreensão à época, tanto com a fase derradeira dos The Jam, quanto com a proposta dos Style Council, o tempo tratou de garantir a Paul Weller o estatuto de pioneiro. E também o reconhecimento como um dos grandes escritores de canções Made in UK, o que se reflecte numa vasta descendência que vai de Morrissey (sim, ele há-de admiti-lo) a Pete Doherty. 

Numa espécie de tributo de reconhecimento ao herói Modfather, que melhor que ninguém soube combinar a consciência social da working class com o espírito pop, e fruto de mais um surto do "sindroma Alta Fidelidade", apresento-vos o meu top ten pessoal dos The Jam. Pelo menos o de hoje, em regime countdown, e resultante de uma short-list de duas dúzias de temas, é assim:

10. "Start" (Sound Affects, 1980)
09. "Beat Surrender" (single, 1982)
08. "Mr. Clean" (All Mod Cons, 1978)
07. "To Be Someone (Didn't We Have A Nice Time)" (All Mod Cons, 1978)
06. "Going Underground" (single, 1980)
05. "Monday" (Sound Affects, 1980)
04. "In The City" (In The City, 1977)
03. "Down In The Tube Station At Midnight" (All Mod Cons, 1978)
02. "Town Called Malice" (The Gift, 1982)

01. "That's Entertainment" (Sound Affects, single, 1981)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Um pequeno mundo em ruínas





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Liz Harris, a quem a timidez leva a gravar como Grouper, é daquelas artistas com uma dinâmica de lançamentos muito própria, que não obedece propriamente aos processos e intervalos criativos estabelecidos pela "indústria". Não se conclua daí que seja moça dada à preguiça. Bem pelo contrário, em dez anos tem já editados outros tantos álbuns, número nada desprezável nos tempos que correm. O que sucede é que o ritmo de edições não é regular, e muitas vezes um novo disco repesca velhos temas deixados em estado embrionário no manacial de criação que o trabalho em recolhimento caseiro proporciona. O último The Man Who Died In His Boat (2013), por exemplo, recuperava canções já com alguns anos de gestação, do tempo do soberbo Dragging A Dead Deer Up A Hill (2008) e, como tal, parente próximo daquele. Ou seja, ambos eram discos de temas densos mas simultaneamente frágeis, compostos por esboços de canções que vagueavam num limbo entre a perdição e a redenção.

Com o novíssimo e altamente recomendável Ruins sucedeu algo de semelhante, já que a concepção dos seus oito temas remonta a 2011, quando Liz Harris se remeteu a um retiro em Aljezur, no sul de Portugal, a fim de cicatrizar feridas de (des)amores antigos. Por conseguinte, este é o seu trabalho mais violentamente emocional, apesar de reduzir ao esqueleto as texturas que, outrora, eram de uma densidade quase impenetrável. Os ruídos incidentais, que antes eram uma medida recorrente, estão agora praticamente remetidos aos temas de abertura e de fecho. Estes são uma espécie de contextualização de lugar, uma vez que pelo meio, no cerne do disco, as delicadas canções ao piano fazem de nós uns voyeurs despudorados, que seguem cada passo da deriva da autora na sua clausura intimista. Com um gradiente de desfocagem menos evidente que os antecessores, Ruins é também o primeiro trabalho de Grouper em que a voz se assume como algo mais que um instrumento. Apesar de exigirem uma atenção especial, o balbuciar daquelas frases ténues denota a necessidade de expelir palavras urgentes. Por isso, este é um daqueles discos que exige que façam um pausa nas tarefas domésticas e se deixam imergir no íntimo em ruínas de Liz Harris. Não queria usar frases feitas, mas garanto-vos que, primeiro, Ruins estranha-se, mas depois entranha-se.

 
"Holding" [Kranky, 2014]

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Desenterrar o passado
















Embora não gozem da mesmo estatuto em território europeu, em casa as Sleater-Kinney são aquilo a que se pode chamar uma instituição, um expoente da fervilhante cena musical do noroeste estado-unidense. Com alguma desconfiança, pode até argumentar-se que as moças de Portland souberam apenas capitalizar o estilhaço riot grrrl que as antecedeu, bem como a atenção posta na vizinha Seattle em inícios de noventas. No entanto, tais alegações serão tremendamente injustas com o percurso ímpar de uma banda que, sem abdicar de um teor altamente politizado (essencialmente feminista), nunca se rendeu à estagnação. Afinal, não são muitas as bandas que se podem gabar de um legado de sete álbuns, sem pontos baixos, e em constante e subtil progressão. Do lote altamente conistente, contudo, é imperativo destacar um par de discos, um da sonoridade mais directa da primeira fase, outro da complexidade adquirida do período avançado. Falamos, obviamente, do terceiro Dig Me Out (1997), e primeiro em que a baterista Janet Weiss se juntou às guitarristas/vocalistas Corin Tucker e Carrie Brownstein para constituir a formação clássica que perduraria até à despedida, e do derradeiro e avassalador The Woods (2005). Perante o brilhantismo deste último, foi com alguma estupefacção que recebemos a notícia da separação em 2006, suavemente anunciada como um "hiato por tempo indeterminado".

Desde então, Corin dedicou-se à família e a uma discreta carreira a solo, enquanto Carrie e Janet se reuniram no super-grupo Wild Flag, projecto breve que rendeu apenas um álbum homónimo, ao qual o tempo ainda concederá o estatuto de clássico. A última fez também parte dos The Jicks, a banda que tem acompanhado o ex-Pavement Stephen Malkmus. Porém, cada aparição de qualquer das três com novo projecto, era sempre motivo para manifestação da nostalgia das Sleater-Kinney. Para que os infiéis possam entender toda a importância atribuída ao trio como um dos mais relevantes colectivos do rock no feminino, a novíssima caixa retrospectiva Start Together é ferramenta indispensável. Digo-vos que inclui a totalidade da obra gravada numa edição limitada a 3000 exemplares em vinil colorido, sendo que também é possível adquirir cada um dos sete álbuns remasterizados individualmente, em CD ou no convencional vinil negro, e sem os habituais brindes dos boxsets. Além de extremamente apetecível, o pacote completo tem um preço quase proibitivo, pelo que, pode ser extremamente útil para atestar amizades pelo Natal. Não obstante, a melhor das prendas é algo não propriamente material: o regresso das Sleater-Kinney ao activo, algo que os mais optimistas já profetizavam com o fim abrupto das Wild Flag e a saída de Janet Weiss dos The Jicks. O boato confirmou-se, e até há já álbum novo no horizonte, com edição prevista para Janeiro do ano próximo e com título genérico No Cities To Love. Há até um primeiro avanço em formato single, incluído como bónus em Start Together. A julgar pelo aperitivo, será um regresso das Sleater-Kinney a crueza "punkóide" dos primórdios. Portanto, um recomeço, completo que foi o anterior ciclo evolutivo.

"Bury Our Friends" [Sub Pop, 2014]

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Good cover versions #86














TINDERSTICKS - "Here" [Sub Pop, 1995]
[Original: Pavement (1992)] 

Here by Tindersticks on Grooveshark

Percorremos as dezenas de canções espalhadas pela discografia dos Pavement, e dificilmente encontramos qualquer vislumbre de emoção. Stephen Malkmus, o compositor praticamente exclusivo, era demasiado cínico para expressar algo mais que sarcasmo refinado, talvez a receita mais indicada para a cultura acelerada de noventas, pelo menos a julgar pelo estatuto simbólico da banda em relação a essa década. Como não há regra sem excepção, "Here", tema maior do excepcional debute Slanted And Enchanted, é um momento isolado de rara ternura. Apesar da marca registada da letra de sentido dúbio, e recheada de jogos de palavras, a canção desenrola-se numa toada vagarosa, entre a valsa lenta e a canção de embalar.

Bem vistas as coisas, o registo original de "Here" não está assim tão distante do universo dos Tindersticks, ao ponto de estes se apropriarem do tema para uma edição do Sub Pop Singles Club, série histórica da editora de Seattle com outras versões improváveis. Como tal, os britânicos não precisaram de grandes alterações à estrutura original para conseguir aquele efeito de ambiente nocturno que é habitual nas suas canções. As diferenças residem sobretudo nos processos, com uns Pavement filiados no indie-rock canónico a privilegiarem a trindade guitarra-baixo-bateria, enquanto os Tindersticks, na sua demanda de uma pop de câmara, fazem uso sem pudores de uma secção de cordas. Sem esquecer, claro está, as vozes completamente divergentes de Malkmus e Stuart A. Staples: de puto reguila à beira da apneia a do primeiro; arrastada, grave, e precocemente envelhecida a do último. Esta versão de "Here" tem ainda a particularidade de ser, porventura, o último golpe de asa dos Tindersticks, surgidos com uma proposta fresca poucos anos antes, mas em vias de se tornarem chuva-no-molhado com o progressivo polimento da sonoridade própria, cujo principal trunfo era a rugosidade instalada numa pop supostamente "erudita".

domingo, 26 de outubro de 2014

R.I.P.


JACK BRUCE
[1943-2014]

Ontem, sábado dia 25 de Outubro, o Panteão do Rock registou a entrada do músico escocês Jack Bruce. Tinha 71 e pereceu de doença hepática.

Com uma carreira activa ao longo de meio século, o principal papel ocupado por Bruce na História Rock foi como principal vocalista e baixista dos efémeros mas influentes Cream, nos quais coabitava como o guitarrista Eric Clapton e o baterista Ginger Baker. O embrião para esta espécie de super-grupo, imortalizado como o paradigma do power-trio, foram os Powerhouse, um projecto de vida breve que, além de Bruce e outros elementos, incluía Clapton e o vocalista Steve Winwood. Durante escassos dois anos de existência, recheados de convulsões internas, os Cream deixaram registados quatro álbuns. De todos, o destaque obrigatório é para a obra-prima Disraeli Gears (1967), autêntico tratado da fusão blues-rock com psicadelismo em voga à época em que também Jimi Hendrix agitava as mesmas águas.

Depois do fim dos Cream, em 1968, quando o trio entendeu que tinha chegado a um ponto de estagnação criativa, Jack Bruce iniciou uma carreira a solo que rendeu inúmeros álbuns, o último já deste ano. Participou também num número considerável de colaborações, sobretudo afiliadas dos blues, mas também numa vastidão de géneros que vai do jazz à música erudita. Músico com formação clássica, dominava ainda outros instrumentos como o piano ou o violoncelo. No entanto, é como baixista que ficará recordado como um dos mais notáveis e influentes do universo rock.

Sunshine Of Your Love by Cream on Grooveshark
[Reaction, 1967]

White Room by Cream on Grooveshark
[Polydor, 1968]

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Encontro de irmãos
















Não fosse o assomo de quase-sucesso dos The Chills, e certamente os The Clean seria a mais "badalada" banda do vasto património pop da distante Nova Zelândia. Por questões cronológicas, contudo, o estatuto pioneiro assenta melhor nos últimos. Para além da amizade e do respeito mútuo, as duas bandas têm ainda em comum os longos períodos de inactividade. No caso dos The Clean, pelo menos, os hiatos são justificáveis pelas actividades musicais paralelas de qualquer dos seus membros: o guitarrista David Kilgour, o baixista Robert Scott, e o baterista Hamish Kilgour. Foi por um feliz acaso (ou talvez não) que, coincidindo com a recente reedição da indispensável compilação Anthology, ambos os irmãos Kilgour lançaram, praticamente em simultâneo, álbuns em nome próprio.

Com uns quinze dias de antecipação, em pleno Verão, David Kilgour revelou End Times Undone, já o seu oitavo trabalho a solo, e mais um na companhia de The Heavy Eights, colectivo de formação variável composto por músicos amigos disponíveis, consoante as ocasiões. Este é um daqueles discos indie da velha escolha, algo em desuso, que certamente fará as delícias dos saudosistas do romantismo rico em melodia dos australianos The Go-Betweens. É também um registo pródigo em descargas eléctricas, que tanto podem remeter para a distorção dos Velvet Underground como para as cavalgadas imponentes de Neil Young, de onde se conclui ser um disco que aspira a uma certa grandeza.

Quanto a Hamish Kilgour, bastante menos activo no percurso extra-curricular, tem resumido a sua obra fora dos The Clean praticamente ao trabalho nos The Mad Scene. Incrivelmente, e volvidas que estão mais de três décadas desde a estreia nas lides, All Of It And Nothing é o seu primeiro álbum em nome individual. Comparado com o trabalho do irmão, é um disco bastante mais discreto, mas também mais complexo e menos imediato. À superfície, os onze temas do alinhamento, dão primazia a um regime de baixa fidelidade de dominância acústica. São canções toscas, na essência, com uma secura própria de algum Lou Reed, mas que por várias vezes derivam para algo de abstracto que não se detém na catalogação estanque dentro de um género específico.

Portanto, End Times Undone e All Of It And Nothing são manifestações de duas diferentes sensibilidades, libertas da coexistência numa entidade comum. No entanto, quando isoladas certas características de ambas, a combinação talvez não esteja assim tão distante da matriz The Clean: desde a pop rugosa e desengonçada dos primórdios, à serenidade outonal dos tempos mais recentes.

 
 David Kilgour & The Heavy Eights - "Some Things You Don't Get Back" [Merge, 2014]



Hamish Kilgour - "Smile" [Ba Da Bing!, 2014]

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Singles Bar #97










HAPPY MONDAYS
Lazyitis
[Factory, 1989] 



Lazyitis (The One Armed Boxer remix) by Happy Mondays on Grooveshark

Longe de imaginar que se iriam tornar nos porta-estandarte da união de facto da pop com a dance music, no "movimento" que ficou conhecido como Madchester, os ainda obscuros Happy Mondays dos dois primeiros álbuns anunciavam já um corte com o passado da lendária Factory Records. Apesar de ainda não denotarem um espírito hedonista tão vincado como sucederia a posteriori, esse par de discos, e em particular o segundo, possibilitaram um novo fôlego a uma editora com pouco mais para se vangloriar do que as glórias passadas. Com efeito, Bummed (1988) é um daqueles discos que, apesar da recepção inicial refreada, tem merecido uma reavaliação constante em termos de relevância histórica. Contando com Martin Hannett na cadeira de produtor, tem deste um trabalho exemplar, ao nível daquele que prestou para os Joy Division, embora completamente diverso. Assim, se no caso da banda de Ian Curtis Hannett sublimou uma frieza monolítica, com os Happy Mondays proporcionou um caleidoscópio de cores e pontas soltas que nos emerge num estado alucinatório a cada audição.

Não sendo propriamente o disco afecto à dança desenfreada que o frenesim acid house da época proporcionava, Bummed serviu, no entanto, de matéria prima para progressivas contaminações da tendência vigente. Como tal, uns Happy Mondays cada vez mais rendidos às linguagens dançantes sujeitaram vários dos seus temas a remisturas, e com efectivo sucesso. De todas, a mais brilhante será a do tema "Lazyitis", este com descaradas pilhagens a canções de The Beatles, Sly & The Family Stone, e David Essex. Levada a cabo por Paul Oakenfold, quando este já trabalhava na co-produção do festivo e definitivo Pills 'n' Thrills And Bellyaches (1990), a intitulada "One-Armed Boxer Remix" é um autêntico hino ao ócio, bem como a afirmação definitiva do vocalista e letrista Shaun Ryder como o poeta de rua para os novos tempos. Mais do que sublinhar com subtileza o pendor dançante da versão original, a remistura editada em single é na verdade um tema praticamente novo, na medida em que conta com a voz convidada do esquecido Karl Denver, veterano que tinha sido uma lenda country Made in Britain nos idos de sessentas. Dando luta, o velhote, qual percursor de um Mark E. Smith, bate-se de igual para igual com Shaun Ryder numa lenga-lenga rica em calão e onomatopeias surreais. Numa medida inteligente, Oakenfold optou por não incrementar em demasia o teor enérgico da remistura, antes realçando a letra, e com isso fazer de "Lazyitis" não só tema indicado para fim de noite de glória hedonista, como indicativo para o espírito do início da década que se aproximava.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

First exposure #70















DEERS

O espírito C86 anda à solta na capital espanhola. Materializou-se em estilhaços de canções, às vezes com títulos em castelhano embora cantadas no inglês possível, que justificavam uma precária de Phil Spector passada no estúdio com as chicas.

Formação: Ana García Perrote (voz, gtr); Carlotta Cosials (voz, gtr); Ade Martín (bx); Amber Grimbergen (btr)
Origem: Madrid [ES]
Género(s): Indie-Pop, Lo-Fi, Garage-Pop
Influências / Referências: Miaow, Shop Assistants, Vivian Girls, The Velvet Underground, The Shangri-Las, The Crystals

http://deers.bandcamp.com/

 
"Castigadas En El Granero" [Lucky Number, 2014]

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

L'Avventura

















É facto consumado que o espírito indie canónico, difundido originalmente no Reino Unidos há coisa de três décadas, tem actualmente na América do Norte vasta legião de descendentes. Porém, embora menos representado, e porque a quantidade e a qualidade não são sinónimos, é no berço que ainda vão surgindo alguns dos melhores exemplares da prole. Sem desprimor para os excelentes Veronica Falls, e até porque os Belle & Sebastian já pertencem à categoria dos veteranos, sou tentado a atribuir a coroa indie na actualidade aos londrinos Allo Darlin', que por acaso até são dois quartos importados da Austrália. Já na casa dos trintas, esta é gente que entende da poda pop, que fala a mesma língua dos jovenzinhos sensíveis e sonhadores que, tal como Brian Wilson, não foram feitos para estes tempos. Assim tem sido desde a última viragem de década, quando começaram a espalhar pérolas em forma de canção por pequenos formatos e pelos álbuns Allo Darlin' (2010) e Europe (2012). Na melhor linha do "género", são canções ricas em referências, daquelas com que os geeks afins se identificam de imediato, patentes em títulos bestiais como "Henry Rollins Don't Dance" ou "If Loneliness Was Art".

Entre aquele soberbo segundo álbum e o novíssimo We Came From The Same Place algo de importante aconteceu na vida dos Allo Darlin', mais concretamente na da vocalista e escritora de canções Elizabeth Morris, que entretanto casou e trocou Londres pela cidade italiana de Florença. Talvez sejam essas mudanças marcantes que estejam na origem da toada deste terceiro álbum, relativamente mais sisudo, para não dizer mais crescido, e até melancólico, mesmo que a cantora afirme que algumas das onze canções são uma reacção anti-nostalgia. Não sendo propriamente um disco acústico, reduz significativamente a electricidade, trazendo maior visibilidade ao ukelele de Morris e à riqueza melódica das canções, uma vez mais em estado de graça. No entanto, o maior trunfo de todos é mesmo a voz clara e arejada da australiana emigrada, que, sem exibicionismos desnecessários, tem uma franqueza tão próxima quanto a da nossa vizinha do lado, quer cante sobre a inevitabilidade do crescimento, quer verse sobre tolices mundanas. Estas são temáticas intrínsecas a bandas da estirpe cada vez mais escassa dos Allo Darlin', que com We Came From The Same Place proporcionam mais um tratado de simplicidade e esplendor pop, como dificilmente ouviremos em tempos próximos. Portanto, se procuram algo aparatoso, deverão ir bater a outras portas.

[Fortuna Pop!, 2014]

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Mil imagens #52



The Stone Roses - Waterloo, Londres, 1989
[Foto: Tom Sheehan]

A imagem acima foi a da primeira capa dos Stone Roses na imprensa musical, na circunstância no defunto Melody Maker por alturas da edição do histórico álbum de estreia. O buzz já estava criado e, por uma vez, seria inteiramente justificado. Quanto aos Roses, captados pela lente de Tom Sheehan com cerca de um mês de antecedência da edição do disco - isto no tempo em que os discos eram efectivamente "lançados" numa data precisa -, espelham nos rostos a irreverência da sua juventude. Mas também aquela frontalidade arrogante, marca-registada que os acompanhou desde quando ainda não eram mais que a next big thing. No fundo, era o alto nível de auto-confiança de quem está prestes a revelar um dos mais belos capítulos da pop.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Lost in the supermarket















Foto: Noora Lehtovuori

"O fruto clonado é o mais apreciado", é a máxima dos tempos que correm. Com efeito, tem proporções gigantescas a tremenda aceitação que um infindável número de projectos formatados consegue a partir de fórmulas previamente exploradas em linguagens musicais antes "marginais", como o kraut ou o psych. É mesmo impressionante a ingenuidade dos incautos, que caem na batota, como se aquilo que lhes é apresentado, com embrulho acetinado, fosse a mais refinada novidade. Como em todas as tendências, há honrosas excepções que fogem à mediocridade da formatação, no caso em apreço aquelas em que, mais do que decalcar truques, absorve apenas os princípios de um estilo para partir rumo a um infinito de possibilidades. É o caso dos finlandeses Siinai, que a partir de ramificações difusas do kraut, colhem o melhor ensinamento dos rebeldes alemães de setentas: a total liberdade criativa, sem qualquer espécie de preconceitos. Foi sob esta premissa que se estrearam em álbum com Olympic Games (2011), um disco de densos instrumentais que, como o próprio título indica, se inspirava nos jogos com origem na Grécia Antiga.

Igualmente conceptual e instrumental, mas significativamente mais arejado, é o novo e excelente Supermarket, inclusive merecedor de capa ao estilo dos mestres teutónicos. Neste segundo álbum dos Siinai o conceito subjacente é o da actual sociedade de consumo, percorrendo os diferentes momentos de uma ida a uma superfície comercial de grandes dimensões. Porém, até pela total ausência de palavras, não há em Supermarket qualquer juízo de valor condenatório quanto ao acto de comprar, antes pelo contrário, o disco até tem algo de lúdico. Há nos oito temas referências que se pressentem em diferentes momentos, como a pulsão dos Neu!, a deriva espacial dos Tangerine Dream, ou até a propensão épica triunfal de um Vangelis de outras eras. Não obstante a difusão daquelas fontes, os Siinai são donos de uma linguagem muita própria, num disco de inúmeras camadas que exige sucessivas audições para revelar pormenores, como súbitas fanfarras que irrompem das texturas lisérgicas, ou a latência de ritmos afro que surgem do nada. Com estas características, Supermarket poderia muito bem ser a escolha de um programador de "banda sonora de centro comercial" mais ousado, ainda não domado pela ditadura do óbvio. Uma coisa era garantida: o estado transe dos potenciais clientes.

"Shopping Trance" [Splendour, 2014]

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

R.I.P.


STEPHEN SAMUEL GORDON
"THE SPACEAPE"
[?-2014]

Há uma expressão muito batida que diz que as más notícias correm rapidamente, mas que eu desconfio que apenas se aplica a pessoas com estatuto de estrela, mesmo que decadente. Isto porque, não me considerando propriamente um cidadão desinformado, só há algumas horas tive conhecimento da morte de Stephen Samuel Gordon, ocorrida já no passado dia 2, perdida que foi uma longa batalha contra uma forma rara de cancro. Sempre sob o pseudónimo The Spaceape, Gordon era o MC e poeta de serviço na britânica Hyperdub, seguramente a mais relevante editora no espectro da música urbana nos últimos dez anos.

Embora em nome próprio apenas lhe seja creditado o EP de 2012 Xorcism, o nome The Spaceape ganhou notoriedade junto dos mais atentos às novas tendências mais estimulantes com o par de álbuns gravados em parceria com Kode9, alter-ego de Steve Goodman, justamente o fundador da Hyperdub. Além disso, foi requisitado por um número considerável dos actuais estetas sonoros mais badalados, não apenas dentro do circuito do selo londrino, tais como Burial, The Bug, Jerry Dammers, ou Martyn. Salvo informação contrária, a sua voz profunda e as suas ponderações sobre a esquizofrenia do mundo actual foram pela última vez registadas em Killing Season, o novíssimo EP novamente creditado a The Spaceape e ao "patrão" Kode9.

Kode9 & The Spaceape - "The Devil Is A Liar" [Hyperdub, 2014]

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Ao vivo #123

















Dean Blunt (Foto: Vera Marmelo)

Peter Evans Quintet + Fennesz + Dean Blunt @ OUT.FEST 2014 - Casa da Cultura do Barreiro, 03/10/2014

Responsável, de há alguns anos a esta parte, por trazer animação a uma pequena cidade na qual a palavra "crise" é uma assombração desde há décadas, o OUT.FEST é um festival único no panorama nacional no que concerne há representação das diversas franjas da música popular. À semelhança de qualquer outro dos dias do evento (entre 2 e 5 últimos), o programa da passada sexta-feira atesta bem do alheamento dos programadores no tocante aos espartilhos estilísticos. No cartaz, cuja prioridade é abranger um largo espectro de tendências ainda não formatadas segundo os estereótipos do mainstream, também não há qualquer critério de antiguidade das carreiras, pelo que, tanto podemos contar com nomes estabelecidos no segmento leftfield, como com as últimas revelações ainda em estado proto-hipster.

Segundo estas premissas, a ementa da noite da última sexta, com cenário no ambiente kitsch pré-decadente da Casa da Cultura, a ordem dos concertos escalados poderia ser qualquer qualquer uma. Por nenhuma razão em especial, couberam as honras de abertura ao trompetista nova-iorquino Peter Evans, à frente de um quinteto que, além do expectável (contrabaixo, piano, bateria), inclui um operador electrónico que processa em tempo real a performance dos restantes músicos. Se a esta presença insólita acrescentar-mos a informação de que Evans é conhecido pela tendência para o improviso, já vejo alguns narizes a torcerem-se perante a ameaça de uma sessão de "ruído avulso". Porém, desenganem-se os cépticos, pois, não obstante uns lampejos de abstraccionismo, o concerto revela-se algo de bastante harmonioso, lúdico até, e isto sem abusarmos da boa-vontade. Ao longo de dos quase noventa minutos queimados num estalar de dedos, o quinteto é um óptimo entretenimento que percorre diferentes toadas, que tanto podem tanger os ritmos latinos, como o rock mais abrasivo. Cada elemento, mestre no seu ofício, tem direito a solo, destacamdo-se do todo, sem detrimento para os demais, o próprio Peter Evans pela sua incrível capacidade para explorar as potencialidades dos instrumentos (trompete convencional e de bolso), e o baterista guedelhudo, altamente preciso e responsável máximo pelas convulsões abruptas ao longo do concerto.

Bem mais breve foi o austríaco Christian Fennesz, nome de culto na electrónica contemporânea mas que, em boa verdade, é um guitarrista rendido ao processamento electrónico dos arpejos minimalistas. Como tal, apresenta-se numa pouco convencional postura: sozinho em palco, munido de guitarra e laptop. Na bagagem traz o recente Bécs, álbum reminiscente do já clássico Endless Summer (2001), que, portanto, é um contraste harmonioso à deriva abstraccionista dos anteriores trabalhos. Não se limita a reproduzir propriamente as peças daquele disco, embora as ambiências criadas, relativamente mais densas também por força de um som imponente, estejam próximas do clima de Bécs, este mais luminoso. Assim, por mais do que uma vez, sentimos estar na presença dos arremedos espectrais dos cinco Slowdive levados a cabo por um só elemento. É um conceito eficaz nesta brevidade, correndo o risco, se alongado, de se perder na eminência da repetição.

Embora não acrescente novidades significativas à apresentação de há menos de um ano, um concerto de Dean Blunt será sempre motivo de uma fascinante estranheza, sob qualquer óptica e ao fim de um infindável número de repetições da experiência. Toda a encenação teatralizada, a constante tensão latente, a presença imóvel de um segurança em respaldo ao artista, e a simplicidade do jogo de luz (e de longos períodos de escuridão absoluta), são truques simples que adicionam tempero a um espectáculo básico na essência. Tal como tinha acontecido no Teatro Maria Matos, Blunt apresenta uma versão sintetizada do excelente The Redeemer (2013), agora ainda mais reduzida porque também vai sendo hora de avançar com temas do já muito próximo Black Metal. A impressão que fica dos novos temas, que seguem a progressão do artista rumo a uma linguagem mais orgânica, com uma forte presença da guitarra, é que não destoam minimamente do carácter intimista dos restantes, prosseguindo, como tal, no relato confessional e despudorado de trechos do quotidiano sentimental (auto-biográfico ou talvez não). Praticamente conceptual, e sobretudo extremamente coeso, o concerto de Dean Blunt foi capaz, tal como o de Peter Evans antes dele, de arrancar intensos aplausos à mistura com expressões de estupefacção. Devidamente justificados, diga-se.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O jogo das diferenças #32


SHOP ASSISTANTS
Shop Assistants
[Blue Guitar, 1986]

U2
Achtung Baby
[Island, 1991]

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Há 20 anos era assim #15










SUGAR
File Under: Easy Listening
[Creation, 1994]



Cicatrizadas as feridas da separação tumultuosa dos Hüsker Dü, e após um período sabático dedicado à carreira a solo, Bob Mould estava pronto para nova experiência à frente de uma banda. O momento para o aparecimento dos Sugar (novamente um power-trio), na primeira metade de noventas, não poderia ser o mais ajustado, isto caso a intenção fosse mostrar às novas gerações quem primeiro institui a canção angustiada edificada à custa de guitarras desalinhadas. A iniciativa não poderia revelar-se mais proveitosa, já que tanto o álbum de estreia Copper Blue (1992), como o mini-LP Beaster (1993), recolheram aclamação crítica, com correspondência num número considerável número de vendas. Se o primeiro era a tentativa mais séria de Mould em matéria de canções melódicas, o último, feito de sobras daquele, é um portento de negrume envolto em ruído, apenas vendável no período específico da sua concepção, único no que à aceitação das sonoridades mais agrestes diz respeito.

Aproveitando o balanço do estado de graça, File Under: Easy Listening, muitas vezes com título abreviado para FU:EL, não tardou. Em termos estéticos e de conteúdo temático, este terceiro registo pode ser descrito como a súmula dos dois anteriores, ou seja, com o apelo melódico de Copper Blue e a expiação dos demónios de Beaster. Apesar da deliberada acessibilidade dos dez temas, embalados numa capa com motivos kitsch a condizer, o título escolhido só pode ser visto como irónico, pois a "audição fácil" sugerida apenas deve ser entendida no contexto habitualmente torturado da música de Bob Mould, nunca no todo da música pop/rock, de qualquer era. No entanto, FU:EL até acaba por conter algumas da canções mais imediatas do autor, atestando que Grant Hart não era o único dono do elemento pop dos Hüsker Dü, e Mould o responsável exclusivamente pela abrasão sónica. São os exemplos do irresistível "Your Favorite Thing", do angustiado "What You Want It To Be", ou dos inquietos "Gee Angel" e "I Can't Help You Anymore". O primeiro, em particular, é o paradigma da canção feita à medida das college radios de meados de noventas e, como tal, viu o seu valor reconhecido com significativo airplay. Não obstante a dominância do factor melódico, FU:EL não dispensa alguma da rugosidade característica de Mould, como acontece no inaugural e enérgico "Gift", no denso "Company Book" (escrito e cantado pelo baixista David Barbe), e no contundente "Granny Cool", todos eles ricos em torrentes elípticas de alta voltagem. No pólo oposto, porque de pendor semi-acústico, estão "Panama City Motel", "Explode And Make Up", e "Believe What You're Saying", este com a desolação folky característica de Workbook (1989), o elogiado álbum de estreia a solo na ressaca dos Hüsker Dü.

Cerca de um ano após FU:EL, Bob Mould extinguia os Sugar, agora sem arrufos ou atritos entre os integrantes, apenas por vontade própria e com a certeza do dever cumprido, com uma obra escassa mas sem pontos fracos. A retoma da carreira a solo foi uma prioridade, primeiro com alguma indefinição no rumo a seguir, mas com um fôlego revigorado nos anos mais recentes. Nas muitas aparições pelos palcos desse mundo, o legado dos Sugar é já uma presença assídua nos alinhamentos, sem quaisquer pudores ou complexos de inferioridade quando comparado com o estatuto seminal da obra dos Hüsker Dü.

Gift by Sugar on Grooveshark

Your Favorite Thing by Sugar on Grooveshark

Believe What You're Saying by Sugar on Grooveshark

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Três tipos incríveis















Nunca foram motivo para hypes, muito menos caso para vendas significativas, mas o estatuto dos Shellac como referência incontornável da "porrada sónica" faz do surgimento de cada novo álbum um acontecimento. Afinal de contas, não é algo de frequente, já que, em pouco mais de vinte anos de actividades, os registos de longa-duração ainda se contam pelos dedos de uma mão. Formados na primeira metade de noventas, em plena era do reinado da chinfrineira, dispensaram quaisquer apresentações atendendo ao percurso nas lides dos seus integrantes, em particular o do cabeça-de-lista Steve Albini, afamado pela visceralidade e pela infâmia dos Big Black e dos Rapemen, mas também por constar numa infindável lista de fichas técnicas de discos de outrem. Motivadas pelos longos hiatos de ausência, as elevadas expectativas nem sempre são correspondidas, como aconteceu com o último Excellent Italian Greyound (2007), que afrouxava a agressão em favor de divagações épicas de spoken word que estiveram longe de agradar a toda a gente.

Porém, com o novo e longamente aguardado Dude Incredible repõem-se os níveis de brutalidade de outrora, o que é um bom motivo para justificar a excepção aberta pela Touch and Go Records, que há mais de quatro anos tinha interrompido a edição de novos discos, limitando-se à gestão do invejável catálogo. Antes que os cépticos torçam o nariz perante a eventualidade de estarmos na presença de mais-do-mesmo, esclareça-se que Dude Incredible não é meramente um disco de violência- verbal e sonora - gratuita, mas antes um depuramento da agressão característica na banda. Assim, numa aparente emagrecimento do som, sublima-se a dinâmica dos Shellac, hoje um trio completamente sincronizado nas ideias e intenções. Em turbilhão cacofónico, ou à vez, reforçam-se a  aspereza da guitarra metálica de Albini, a contundência do baixo portentoso de Bob Weston, ou a imprevisibilidade das batidas incríveis de Todd Trainer. Com um acerto impressionante, quer nas convulsões abruptas, quer nas escaladas abrasivas, os Shellac justificam, mais que nunca, o rótulo math-rock que lhes colaram desde o começo.

Dude Incredible by Shellac on Grooveshark
[Touch and Go, 2014]

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Mixtape #29: Summer's Last Sound


[Foto: Stereolab, por Joe Dilworth]

Se estabelecermos um paralelismo entre as estações do ano e as etapas de uma vida, o Verão será aquele período que compreende o fim da adolescência e os primeiros anos da idade adulta. É uma fase de descobertas, da formação de uma personalidade, e da definição do gosto. Tive a sorte que o Verão da minha vida fosse um período propício à descoberta musical, coincidente com aquilo que julgo ser o último suspiro de verdadeira criatividade na música popular. Delimitando a coisa, foi algo que teve lugar sobretudo na primeira metade dos anos noventa do século passado, e que se foi desvanecendo a partir de meados da década, como que anunciando o deserto de ideias que se seguiria. Teve lugar na Grã-Bretanha, à margem das tendências dominantes do grunge, do shoegaze, e dos últimos estilhaços baggy/madchester, e não chegou propriamente a ser uma "cena", atendendo às divergências estéticas entre bandas envolvidas. Assim, consoante os casos, as influências baseavam-se em géneros díspares, e normalmente marginais, como o space-rock, o kraut, o psych, a electrónica, o ambient, o noise/drone, ou até o jazz

Esta nova "cassete" com a marca April Skies pretende representar esta cena-que-não-chegou-a-sê-la, e compõem-se essencialmente de bandas de existência efémera e algo obscura, excepção feita a um par de nomes de culto firmado nos nossos dias. Sigam o link indicado, e arrisquem uma viagem no tempo, com o aviso de que a audição poderá ter efeitos secundários quando acompanhada de qualquer tipo de medicação.


01. DISCO INFERNO - Summer' Last Sound (1992)
02. MOVIETONE - Mono Valley (1995)
03. PRAM - Sleepy Sweet (Edit) (1998)
04. STEREOLAB - Super-Electric (1991)
05. MOONSHAKE - Sweetheart (1993)
06. THE HAIR & SKIN TRADING COMPANY - Torque (1992)
07. TH' FAITH HEALERS - This Time (1992)
08. PROLAPSE - Hungarian Suicide Song (1995)
09. LOOP - Afterglow (1990)
10. APPLIANCE - Ursa Major (1998)
11. SPIRITUALIZED - Anyway That You Want Me (Remix) (1990)
12. SEEFEEL - Polyfusion (1993)
13. FLYING SAUCER ATTACK - My Dreaming Hill (1994)
14. QUICKSPACE - Standard 8 (1995)
15. BARK PSYCHOSIS - I Know (1990)
16. THE BETA BAND - Dry The Rain (1997)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Lady sings soul















Na América, berço natural da coisa, a soul de corte clássico é, normalmente, sinónimo de nostalgia de tempos que já lá vão. Já na Grã-Bretanha, onde tem mantido adeptos várias décadas depois do período áureo, tem contaminado as propostas mais sofisticadas da pop dos últimos mais de trinta anos. É nesto limbo, entre a tradição e a modernidade, que surgiu o projecto Lady, justamente encabeçado por cantoras originárias dos dois lados separados pelo Atlântico: a americana Nicole Wray e a a inglesa Terri Walker. A primeira foi, aos 17 anos e na recta final de noventas, a contratação inaugural da editora criada por Missy Elliott, mas acabou por se ofuscar como mera cantora a soldo; enquanto a última obteve, há mais de uma década, boa recepção ao álbum de estreia, mas que não teve continuidade nos registos posteriores. Portanto, ambas alinharam já pelas tendências mais modernaças da música negra, mas renderam-se à soul de travo retro, acrescentando alguma juventude a um universo hoje quase exclusivo de gente de revelação em idade avançada.

Foi com tal propósito que gravaram um álbum homónimo, já com um ano e meio de vida e que ficou todo este tempo, imerecidamente, à espera de ser devidamente escutado. Lady, o disco, é um belíssimo conjunto de canções que transpiram charme à custa da harmonia de duas óptimas vozes. De uma inflexão pop que outrora foi comum às Supremes ou a Martha & The Vandellas, contrasta com a seriedade das novas "estrelas" anciãs da soul, que, normalmente, expõem em canções as cicatrizes de uma vida árdua. No balanço descontraído registam-se alguns pontos de contacto com Amy Winehouse, embora, como se supõe, a abordagem das Lady nada tenha do dramatismo imposto pelo cunho pessoal das canções daquela. Acrescentem-se ainda umas pinceladas de funk-disco, bem como alguns ecos do moderno R&B, tudo devidamente condimentado com extremo bom-gosto. Portanto, não apenas um disco de soul nostálgica stricto sensu, Lady é um disco no qual confluem de diferentes tendências "negras" com uma elegância que já não abunda. A parte má da história é que as mesmas protagonistas não repetirão a gracinha, pois, entretanto, a metade britânica abandonou o barco, deixando as Lady reduzidas a Nicole Wray, devidamente acompanhada de músicos e cantoras de suporte.

If You Wanna Be My Man by Lady A on Grooveshark
[Truth & Soul, 2013]