"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Há 20 anos era assim #14










OASIS
Definitely Maybe
[Creation, 1994]




Sobre os Oasis já tudo terá sido dito e escrito. E do muito que se discorreu, nem tudo foi o mais abonatório. Sobre isso, demos a mão à palmatória, e admitamos que no, apogeu da novela dos tablóides, a banda dos irmãos Gallhager era presa fácil para os detractores. Para complicar as coisas, ali pelo terceiro álbum, era facto consumado de que o momentum se tinha desvanecido às vistas da cegueira da ambição. O que talvez tenha escapado aos emissores da crítica fácil é o par de álbuns que tinham ficado para trás, gerados por uma banda disposta a conquistar o mundo e com as canções certas para o efeito. Para tal, o compositor exclusivo Noel Gallagher não necessitou de qualquer rasgo de génio, ou até de ser particularmente original, apenas da receita do cocktail perfeito de três décadas de pop/rock genuinamente brit

Sobre a edição de Definitely Maybe, o primeiro e mais glorioso desses dois álbuns, passam hoje exactamente vinte anos. Este hiato de tempo parece um ápice quando constatamos o total vazio de bandas desta estirpe desde então, capazes de se estrear com discos que, volvidas duas décadas, preservam toda a sua ferocidade e pujança da primeira audição. Algum do mérito tem de ser atribuído à mistura final, alto-e-bom-som, de Owen Morris, a qual dispensa reedições remasterizadas, apesar de elas andarem por aí, algumas com a contenção que deveria ser decreto-lei para o mercado das reedições. A subida dos Oasis até este patamar foi lenta e a pulso, com a paciência que já não é hábito na fugacidade dos novos tempos. Bem documentados estão os dias de Noel como roadie dos Inspiral Carpets, ou do irmão puto Liam Gallagher a venerar e a interiorizar tiques da atitude dos Stone Roses ou dos Happy Mondays. A história destes rapazes de modos pouco delicados, rebentos da Madchester dispostos a cortar com o cinzentismo associado ao passado da cidade, até tinha tudo para não dar certo. No entanto, o olho/ouvido clínico de Alan McGee acreditou neles e com a aposta conquistou a glória (e o declínio) da fulgurante Factory Records. O intrépido escocês queria algo mais que as críticas francamente favoráveis e as vendas moderadas dos Teenage Fanclub, dos Primal Scream, ou dos Ride, e os Gallagher tinham a ambição desmedida para tal.

Definitely Maybe até nem foi o mais vendido dos discos dos Oasis, mas a sua surpreendente compreensão dos códigos pop/rock enquanto disco de estreia foi determinante para as conquistas posteriores. A primeira demonstração de propósitos está na capa, uma imagem icónica mesmo que as canções que abriga não valessem um chavo. Mas valem muito, todas as onze, qualquer delas um potencial single, como só acontece talvez em uma ou duas mão-cheias de discos nestes sessenta anos de cultura pop. A própria sequência das faixas é ardilosa e, como tal, Definitely Maybe não poderia abrir com melhor manifesto de intenções que "Rock 'N' Roll Star", na voz do reguila e enfadado Liam, com a confiança e a arrogância bastantes para afrontar os dinossauros precoces que chegavam do outro lado do Atlântico. Neste tema inaugural, o sentido pop é uma evidência, mesmo que não se enjeite a distorção e a cacofonia que, à data, ainda eram marca da Creation. 

A dezena de temas que se segue mantém a fasquia em níveis altos, com idênticos processos, e combinando com despudorada sabedoria citações e atitudes do tal cocktail da história pop britânica. Os inevitáveis The Beatles são referência primeira, ainda que nesta fase algo difusa numa paleta que abrange The Who, T-Rex, Sex Pistols, The Jam, The Stone Roses, Teenage Fanclub, e o que mais se possa imaginar do melhor que a Grã-Bretanha produziu em trinta anos. Do equilibrado lote é quase criminoso destacar qualquer dos temas, mas porque representativos das diferentes nuances de Definitely Maybe vê-mo-nos obrigados a referir o psicadelismo revisitado do ocioso "Shakermaker", o non-sense gingão do orelhudo "Supersonic", o balanço do bocejo laddish de "Cigarettes & Alcohol" e, last but not least, a matéria de que se fazem os hinos do soberbo "Live Forever". Este último, de um optimismo latente que sobressai no ennui juvenil do todo, foi alegadamente escrito com John Lennon em mente, mas ganha actualidade com a morte de Kurt Cobain ainda fresca na memória da comunidade pop. Ou talvez seja apenas, sem qualquer tipo de profundidade romântica, porque os Oasis até nem eram dessas merdas, mais uma declaração de intentos da parelha Gallagher e companheiros. Afinal de contas, ainda não nos esquecemos que eram eles que diziam, há uns minutos atrás, "tonight, I'm a rock 'n' roll star"...

Rock 'n' Roll Star by Oasis/Oasis on Grooveshark

Shakermaker by Oasis/Oasis on Grooveshark

Live Forever by Oasis/Oasis on Grooveshark

Supersonic by Oasis/Oasis on Grooveshark

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O jogo das diferenças #31


THE NEW PORNOGRAPHERS
Mass Romantic
[Mint, 2000]

KANYE WEST
My Beautiful Dark Twisted Fantasy
[Roc-A-Fella, 2010]

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Uma casa assombrada















Foto: David Black

Sortes diferentes têm conhecido os revisitadores das sonoridades sunshine-pop de sessentas sob a óptica desfocada indie que, na última meia dúzia de anos, têm sido responsáveis por manter acesa a chama da canção pop. Assim, se os Real Estate são já um nome estabelecido, e os Woods têm, com a insistência, alargado o culto, os san-franciscanos The Fresh & Onlys são ainda um segredo mais ou menos guardado, isto apesar dos cinco álbuns no currículo. Só podemos adjectivar de injustiça este quase anonimato, mormente a partir do terceiro registo, o soberbo Play It Strange (2010) que era abrigo de um belíssimo lote de canções prenhes do espírito west-coast em tons sépia. Já no digno sucessor Long Slow Dance (2012) verifica-se uma inflexão à jangle-pop em voga na segunda metade dos eighties, reveladora de alguma devoção pelos The Smiths.

Com o novo House Of Spirits o espírito de há três décadas permanece, se bem que desta feita os californianos recuperem muita da gravidade usual em bandas de oitenta e poucos, dadas a questões de alguma profundidade. A operação estética, que certamente causa bastante estranheza num primeiro contacto, ainda não é, digo-vos para vos sossegar, a rendição dos The Fresh & Onlys ao aparato "gogó". Concebido durante um retiro no deserto, eventualmente dedicado à expiação dos demónios do mentor Tim Cohen, House Of Spirits ainda retém aquela aridez que é marca da banda. Por conseguinte, no digladiar das vozes projectadas com as guitarradas das regiões fronteiriças de temas como "Animal Of One" assistimos ao improvável encontro dos The Cure com os Eagles. Já no excelente, mas totalmente inesperado, "Bells Of Paonia", o manto feedback de uns My Bloody Valentine cruza-se com a secura desoladora de uns American Music Club. Ainda que a luminosidade não marque propriamente presença em House Of Spirits, há a registar na segunda metade da dezena de temas um desvanecer do dramatismo. Curiosamente, e depois de devidamente absorvida a tensão dos primeiros temas do alinhamento, esta parte, numa vertente aligeirada dos Echo & The Bunnymen, é a menos estimulante do disco. Porém, as diferenças de atmosfera não são assim tão significativas para pôr em causa a coesão de um álbum que, acima de tudo, regista um afastamento considerável da "zona de conforto" dos The Fresh & Onlys.

[Mexican Summer, 2014]

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Trauma revisitado















Nos alvores desta década, Dylan Baldi apresentou-se ao mundo como mais um jovem solitário dado a gravações caseiras de um power-pop com travo punky. Nessas edições já remotas, sob a chancela Cloud Nothings, o sol penetrava com relativa incidência e os princípios lo-fi eram a norma. Foi com alguma surpresa que, no começo de 2012, recebemos os primeiros sons do superlativo Attack On Memory, primeiro registo concebido pelos Cloud Nothings enquanto banda propriamente dita. Gravado por Steve Albini, o álbum era um ataque sónico evocativo dos subterrâneos post-hardcore de bandas como os Wipers ou os Unwound. As canções enegrecidas espelhavam o angst juvenil, e tinham uma complexidade intrínseca que as ligava entre si, o que fazia de Attack On Memory um disco em certa medida conceptual. O rótulo emo recuperava o seu sentido primordial, que não o dos poseurs pretensamente sofredores de uma certa estirpe de boy-bands modernas.

Com o novo Here And Nowhere Else, Baldi e os Cloud Nothings, agora reduzidos a trio, reincidem na expiação dos demónios. Portanto, este álbum é uma aposta na continuidade, mas não necessariamente na repetição. Nem melhor nem pior que o anterior registo, Here And Nowhere Else será antes um trabalho de consolidação de uma sonoridade, mais amadurecido ao nível da escrita das canções. Tal não significa que a dinâmica das mesmas tenha reforçado a sua complexidade; antes pelo contrário, os oito temas que preenchem pouco mais de meia hora de música são petardos punk-pop com acentuação naquele sufixo. É quase certo que Dylan Baldi se tenha guiado pelos ensinamentos de Kurt Cobain, ao ponto de em inúmeras ocasiões as catarses de berraria nos fazerem recuar a memória para os primeiros anos dos noventas. A naturalidade com que aquele ícone criava canções igualmente comprometidas com a eficácia pop e a agitação emocional será porventura inatingível, mas que Baldi tem estudado bem a lição é também inequívoco, tal como Here And Nowhere Else o atesta.

Psychic Trauma by Cloud Nothings on Grooveshark
[Carpark, 2014]

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Mil imagens #51



Manic Street Preachers - Londres, 1990
[Foto: Joe Dilworth]

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Good cover versions #85













RAINY DAY - "I'll Be Your Mirror" [Llama, 1984]
[Original: The Velvet Underground (1967)] 

I'll Be Your Mirror by Rainy Day on Grooveshark

A existir tal título, o de rebelde do movimento californiano Paisley Underground teria de ser atribuído a David Roback, que antes de assentar nos duradouros mas preguiçosos Mazzy Star já tinha passagens breves por duas bandas com algum reconhecimento: primeiro os Rain Parade, depois os Opal. Um pára-pouco, talvez um insatisfeito, não consta, porém, que tenha criado inimigos à sua passagem. Bem pelo contrário, parece que cultivava amigos na "cena", muitos deles reunidos à sua volta nos Rainy Day, o projecto one-off que criou logo após o abandono dos Rain Parade. O propósito era recriar canções da autoria dos músicos que serviam de guia aos princípios do Paisley Underground, essencialmente da segunda metade de sessentas, mas também da década seguinte. Assim, no único álbum (homónimo) gravado, podemos encontrar diferentes vozes a interpretar versões de temas de autores diversos: de Dylan a Hendrix, dos The Who aos Big Star. No alinhamento, não podia faltar um tema original dos Velvet Underground, a banda de culto do movimento, a referência marginal.

A escolha do reportório dos nova-iorquinos recaiu sobre "I'll Be Your Mirror", porventura o menos gélido dos três temas que Nico canta no álbum de estreia, aquele em que Andy Warhol impingiu a diva alemã ao "subterrâneo de veludo". No original uma canção bastante próxima das regras pop, apenas subvertidas pelas imperfeições de Nico, eventualmente umas oitavas à frente da música, é revisitada na versão dos Rainy Day na voz de Susanna Hoffs, a vocalista das Bangles, nesta fase apenas uma pop-star em perspectiva. Os dois registos não poderiam ser mais diferentes: uma Nico glacial encarna o anjo da desgraça; Hoffs, por seu turno, irradia luminosidade ao interpretar uma letra que não é propriamente o paradigma da felicidade. Outra característica da versão dos Rainy Day é a informalidade, ao ponto de se iniciar com a contagem que normalmente antecede a entrada dos instrumentos nas sessões de ensaio, servindo em certa medida de tubo de ensaio a uma certa balada bastante mais produzida das Bangles, já na fase do estrelato. Sem esquecer a beleza infinita de ambas as cantoras, o outro ponto em comum será a simplicidade de original e versão, algo habitual nas composições exclusivamente creditadas a Lou Reed nos primórdios dos Velvets

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

For Emma, forever ago
















Contrariamente ao que normalmente é veiculado, Lee Fields não é uma revelação em idade avançada no universo soul. Hoje com 63 anos de idade, tem cerca de quatro décadas de carreira, mas o que é certo é que, depois da edição de Let's Talk It Over (1979), o soberbo álbum de estreia, e não obstante ter editado com assinalável regularidade, a conjuntura não lhe foi favorável e caiu praticamente no esquecimento. Habituado aos estúdios, tem, por isso, uma voz mais treinada que a de gente como Sharon Jones ou Charles Bradley, dois dos mais badalados novos-velhos que são talento em bruto. Talvez o motivo para que o nome de Fields surja associado ao daqueles advenha do facto de, ao fim de dez anos de silêncio que presumiam a desistência, a Truth & Soul lhe ter relançado a carreira. O momento coincidiu com aquele em que a Daptone Records apostava em Jones e em Bradley como novos valores para o interesse renovado de uma nova geração hip, essencialmente branca, pelas sonoridades retro-soul, eventualmente motivada pela busca de uma ideia de pureza. De então para cá, aquela editora nova-iorquina já foi selo de My World (2009) e de Faithful Man (2012), dois álbuns merecedores de alguns louvores mas que não valeram a Lee Fields ainda uma visibilidade significativa junto do público.

Talvez o caso possa mudar de figura com o novo e excelente Emma Jean, que tem como título o nome da mãe do cantor, falecida há quase vinte anos. Por via daquela inspiração, e quando comparado com a restante obra, é um trabalho significativamente sóbrio, diria até, carregado de uma certa espiritualidade. Como tal, Lee Fields surge contido, apenas vagamente politizado, sem o espalhafato que lhe era característico, e que já lhe valeu no passado a alcunha de Little JB, tanto pelas semelhanças fisionómicas com o mestre James Brown, como pelos tiques vocais. Por conseguinte, Emma Jean está próximo de um conceito de soul sulista, com uma voz madura mas em pleno de forma, capaz da introspecção de um Bobby Womack, mas também da expressividade de um Otis Redding. Igualmente brilhante é o suporte instrumental, a cargo dos The Expressions, banda que já há alguns anos acompanha o cantor. Menos exuberante que outras bandas congéneres, mas aparentemente mais rica em ideias, os Expressions são capazes dos sopros mais incríveis e menos previsíveis, que sublinham com subtileza os picos dramáticos de cada canção. A secção de metais é, no entanto, apenas o destaque de um todo capaz de criar temas que se aguentam sem o complemento vocal, o que levanta a hipótese da edição em disco dos trechos instrumentais, com já aconteceu com o anterior My World. Porém, o resultado eventual ficará sempre aquém do da simbiose "banda + voz", que desta feita logrou um clássico instantâneo da soul, em qualquer época. Sim, Emma Jean é assim de bom!

 
"Just Can't Win" [Truth & Soul, 2014]

sábado, 9 de agosto de 2014

Batcave
















Aproveitamos a viagem até à Nova Zelândia do último post e ficamos por lá mais um pouco. Não é que no distante arquipélago estejam a ocorrer novidades em número comparável ao da vizinha Austrália, mas toda e qualquer reedição das pérolas do baú da Flying Nun Records é sempre digna de nota neste blogue. Aproveitamos a deixa para uma breve referência à edição expandida de Anthology, a compilação de 2002 que resumia a primeira vida dos The Clean, banda que foi pedra-de-toque no chamado Dunedin Sound mesmo sem ter editado qualquer álbum, mas espalhando a sua influência além-fronteiras para bandas como Yo La Tengo ou Pavement. Quando suspenderam actividades abruptamente em 1982 (só as retomariam no começo da década seguinte), o baixista Robert Scott fundou os The Bats, banda de formação mais ou menos estável que tem mantido uma actividade regular nestes mais de trinta anos, algo que não podemos dizer de outros notáveis do catálogo da mítica editora, como The Chills e The Verlaines. O nível qualitativo em alta tem sido também uma constante, e o último álbum Free All The Monsters (2011) é mesmo um dos melhores espécimes da pop amadurecida e outonal do passado recente.

Até ao aprimorar daquele último registo foi um longo caminho, como de resto se pode aferir pelo conjunto de reedições recentemente levadas a cabo pela incansável Captured Tracks. De uma penada, a editora nova-iorquina acaba de lançar em vinil os três primeiros registos em formato grande dos The Bats, a saber: Compilitely Bats (1987), compilação dos três EPs do período formativo que vem acrescentada de faixas avulsas e raridades da mesma era; Daddy's Highway, primeiro álbum do mesmo ano; e The Law Of Things (1990), segundo álbum acrescido do EP Four Songs (1988) e vários outtakes. Se o preço do pacote de cinco rodelas estriadas é praticamente proibitivo, mais em conta, e com os mesmos 53 temas no conteúdo, é o 3 CD boxset The Bats: Volume 1, título que presume futuros desenvolvimentos no programa de reedições. Do todo temos de destacar o disco do meio, inteiramente dedicado ao primeiro álbum, recheado de enormes canções jangle-pop a meio caminho entre o optimismo romântico e o quase desespero, não totalmente diferente daquilo que os vizinhos The Go-Betweens andavam a congeminar na mesma altura. Se aos The Bats ainda não pertence o estatuto de lenda daqueles congéneres australianos, mas porque nunca é tarde, Volume 1 pode muito bem ser um passo nesse sentido. Ora oiçam e acrescentem mais esta paixão à vossa vida!

 
"Block Of Wood" [Flying Nun, 1987]

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Pretty in pink
















Na alvorada de oitentas, precisamente na mesma altura em que, nos confins da América, uns desconhecidos R.E.M. iniciavam a recuperação da canção pop de travo psicadélico de sessentas sob as regras do-it-yourself difundidas pelo punk, na distante Nova Zelândia uma pequena comunidade de jovens bandas levava a cabo idêntico processo. Mas, se os ianques conheceram o estrelato massivo posteriormente, a semi-obscuridade foi o destino daqueles protagonistas do chamado kiwi-rock. A história poderia ter sido diferente para alguns deles, mormente uns tais The Chills, que estiveram a uma nesga da consagração no período de todas as oportunidades de inícios da década de 1990. Porém, o percurso errático de Martin Phillips, mentor, compositor, e único membro permanente, foi determinante na sabotagem de um plano que nem terá chegado a ser traçado, tal a fobia do sucesso. Mesmo apesar dos longos hiatos de ausência, há que reconhecer em Phillips a autoria de bom lote de canções intemporais, a mais brilhante de todas "Pink Frost", seguramente a mais bela canção jamais escrita sobre uma overdose. Simplista na estrutura, é um tema que assenta toda a sua melancolia imaculada numa circular de ritmo motorik e delicadas guitarras etéreas. Como nem só de hits se faz a história pop, "Pink Frost" tem estatuto de clássico na definição de uma linguagem indie canónica, tal como a conhecemos.

Foi por via de tal veneração, e também em jeito de celebração do fim do longo silêncio, que, no ano passado, elegemos a novidade "Molten Gold" como um dos acontecimentos pop. O que na altura não se disse é que aquele lançamento acontecia apenas em formato digital. Para os amantes da coisa física temos boas notícias, já que o mesmo tema acaba de conhecer edição em formato 7". Como se não bastasse, o lado b é uma regravação de "Pink Frost", concebida pela bastante activa reencarnação dos The Chills para assinalar os 30 anos da edição original daquele tema. Antes que venham invocar o sacrilégio e a intocabilidade, esclareça-se desde já que o remake não só honra o original, como é em certa medida uma canção nova. Sem o teor atmosférico e a contaminação kraut da versão de 1984 (mas gravada em 1982), respeita ainda assim a estrutura original. No entanto, é um tema mais expansivo, de guitarras mais dominates e estridentes, que abre boas perspectivas para a sonoridade renovada do prometido futuro álbum que se antevê próximo. Ora oiçam, comparem, e digam de vossa justiça:


[Fire, 2014]

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Fazer por merecer















Posso estar redondamente enganado, mas julgo que já só escapa aos mais distraídos a avultada importância na música da última meia dúzia de anos de uma dupla que se apresentou ao mundo sob a designação Hype Williams. Os seus integrantes eram Dean Blunt e Inga Copeland que, eventualmente para prevenir conflitos com o realizador de vídeos de serviço à burguesia pop actual, a partir de dada altura passou a assinar os seus lançamentos frequentes com o nome (artístico) dos intervenientes. Alterou-se a nomenclatura mas manteve-se a imprevisibilidade, numa obra que num curto espaço de tempo transpôs o reduto da electrónica. Já distante da frieza inicial, The Redeemer, o majestoso álbum do ano passado creditado apenas a Blunt que se assume sem pudores as canções, naquilo que poderá ser uma forma de soul pós-moderna para o século em curso. Consumada a separação da dupla, como viemos a saber mais tarde, Inga respondeu pouco depois com Don't Look Back, That's Not Where You're Going (2013), um curto EP próximo das formas mais avançadas da dance music que serviu para se afirmar como algo mais que a sombra da metade masculina do projecto.

Se dúvidas houvesse quanto à importância da metade feminina de origem estónia no duo desfeito, o recente álbum Because I'm Worth It, assinado simplesmente por copeland - assim mesmo, em minúsculas -, está aí para as dissipar, com todo eclectismo imaginável contido no espaço de menos de meia hora. À versatilidade, o novo trabalho junta uma certa tendência para a estranheza, algo que não será novidade para os conhecedores da obra anterior da rapariga. Digamos que a porta de entrada, com "Faith OG X", por sinal o tema mais longo do alinhamento, é até algo hostil, com cinco minutos à base de uma sequência de estática a que se junta um silvo incisivo aí pela marca dos dois minutos. Ainda numa toada esquizóide, "insult 2 injury" tem no contraste da batida opressiva com os apontamentos cinemáticos a apropriação dos processos hip-hop, enquanto "Serious" é apenas um curto esboço digital de sons quase liquefeitos. Para trazer algum apaziguamento, "Fit 1" e o curto "DILIGENCE" são a quase subversão da balada nocturna, com uma atmosfera densa, mas com uma serenidade considerável, mesmo que o primeiro não rejeite a intromissão das batidas contundentes. No leve "Inga", a voz da homónima é de uma frescura girlish que lhe desconhecíamos. É algo que contrasta com a cadência mecânica de "advice to young girls", com copeland no papel da conselheira anjo/demónio das jovenzinhas do mundo moderno, acompanhada pela síncope da batida rigorosa do convidado/produtor Actress, também este um dos criadores em estado de graça no universo da actual música urbana do Reino Unido. 

Este último tema - segundo no alinhamento - é o ponto alto de um disco intrigante, revelador de diversas facetas após o impacto inicial, e que faz o uso engenhoso do contraste da luz e das sombras. Agora ficamos a aguardar pela "resposta" do velho compincha Dean Blunt, com o sugestivo título de Black Metal, álbum e livro do mesmo nome, provavelmente já em finais do mês que vem. À cautela, estejam preparados para o que der e vier.

[edição de autor, 2014]

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Ao vivo #122

















Evan Parker & Matthew Shipp @ Fundação Calouste Gulbenkian, 02/08/2014

Precisamente no ano em que o programa do Jazz em Agosto da Gulbenkian conhece uma relativa abertura ao facilitismo do apelo às massas, dois nomes sobressaem no cartaz como sinónimo do maior arrojo que normalmente caracteriza um festival único no panorama nacional. São eles o saxofonista (tenor e soprano) inglês Evan Parker e o pianista norte.americano Matthew Shipp, separados na idade por uma geração. O primeiro é uma figura de relevo na história do jazz europeu, já com estatuto de lenda, enquanto o segundo para lá caminha. Figuras de proa na arte da improvisação, são ambos abertos à transposição do género, e para além de diversas colaborações registadas como dupla, já se encontraram em trabalhos do colectivo britânico Spring Heel Jack, este com berço no nicho da música electrónica.

Para os cépticos que catalogam a facção free-jazz como uma mera cacofonia desregrada, os primeiros instantes do concerto de sábado poderiam ser defesa de tal tese. Isto se a preguiça associada a tal convicção toldasse os sentidos ao ponto de não se reconhecer logo aqui a mestria de qualquer dos executantes, ambos com uma destreza que assusta nos tempos curtos desta primeira parte feita de texturas convulsas. Já tal tese é indefensável quando a dupla envereda por uma toada de assinalável harmonia, mas nem por isso menos imprevisível e experimentalista. A atmosfera delicada ganha realce quando Evan Parker assume o sax soprano, este que quando chega o momento do solo é capaz de sons que julgávamos inimagináveis naquele instrumento, ao mesmo tempo que demonstra todo o seu virtuosismo numa simbiose perfeita do fôlego com a agilidade dos dedos. Também Matthew Shipp tem o seu momento de brilho a solo, também num jogo do contraste entre os sons incisivos e o quase silêncio, sempre na linha de tempos curtos que caracterizou a actuação. No final, o curto encore soube a pouco como culminar de uma hora e um quarto que se esgotou num ápice.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

First exposure #68














Foto: Sebastian Nevols

GIRL BAND

O primeiro embate com uma das novas bandas mais excitantes do planeta deu-se num palco do último Primavera Sound, cenário óptimo para aferir da brutalidade do quarteto. À falta das raparigas, são a certeza de que ainda pode haver bastante interesse na exploração do post-punk mais obtuso. Em jeito de resumo, digamos que são o elo de ligação da Inglaterra pós-Pistols com a descendência do underground norte-americano de Our Band Could Be Your Life.

Formação: Dara Kiely (voz); Alan Duggan (gtr); Daniel Fox (bx); Adam Faulkner (btr)
Origem: Dublin [IE]
Género(s): Indie-Rock, Post-Punk, Noise-Rock
Influências / Referências: Public Image Ltd., Liars, Nirvana, The Jesus Lizard, Mclusky, Pavement

http://girlbanddublin.bandcamp.com/

"Lawman" [Any Other City, 2014]

terça-feira, 29 de julho de 2014

Singles Bar #95









THE HOUSE OF LOVE
Destroy The Heart
[Creation, 1988]




Com um nome como The House of Love, retirado de um título da escritora francesa Anaïs Nin, adivinha-se a carga erótica contida nas canções da banda que mais agitou o meio indie de finais de oitentas. Essa era uma característica antagónica ao teor normalmente assexuado dos temas dos The Smiths, dos quais os londrinos chegaram a ser apontados como herdeiros junto de um público letrado e sensível. A apurar o olho clínico que se lhe reconhece, Alan McGee detectou-lhes o potencial, e juntou-os à família Creation Records, então na eminência de se tornar a mais excitante editora independente do Reino Unido. Com este selo lançaram dois temas retumbantes em formato single, ambos prenhes de um romantismo exacerbado: "Shine On", que seria posteriormente regravado numa versão mais pomposa mas inferior, e "Christine", espécie de ponte entre a jangle pop e o shoegaze. Lançaram ainda um álbum homónimo, que inclui o último destes temas, cuja óptima recepção deixou as multinacionais em alerta para a inevitável mudança de divisão.

Como carta de despedida da Creation, "Destroy The Heart" é o justo reconhecimento por quem primeiro acreditou na banda, já que é o mais fulgurante dos muitos temas bestiais que os House of Love registaram nesta primeira fase. Numa urgência condensada em menos de três minutos, o vocalista Guy Chadwick e o guitarrista Terry Bickers justificam as comparações à dupla criativa Morrissey/Marr, o primeiro num hiper-romantismo bigger than life, o último capaz de uma gama de riffs variados e crepitantes. Porém, num registo mais vivaz do que era comum nos de Manchester, e muito por culpa da bateria cavalgante, os House of Love estão perto de inaugurar o estilo celebratório do clássico primeiro álbum dos Stone Roses. Apenas perto porque a matéria de que é feito "Destroy The Heart" é algo grave, um pouco à semelhança do que faziam os Hüsker Dü da fase derradeira, depois da fúria hardcore ter dado lugar à tendência para a pop profusamente emocional e passivo-agressiva. Contrastando com a grandiloquência entremeada pelo fade in inicial e o mais abrupto fade out do final, o vídeo promocional é de um minimalismo alarmante, algo em voga no circuito indie de então, e que os House of Love já haviam experimentado para promover o tema "Christine".


quarta-feira, 23 de julho de 2014

Who's in control?
















Penso que não é preciso ser-se um visitante assíduo deste pasquim para já se ter percebido que, por cá, já fizemos as pazes com a Austrália. Com efeito, já não é de hoje que andamos a celebrar que, num ápice, a grande ilha tenha sido pasto de um bom número das maiores aberrações musicais do passado recente, e se tenha tornado terra fértil nos mais obtusos - por norma, os mais estimulantes - projectos. O que de lá tem vindo, nos últimos dois/três anos, tem ainda a particularidade de ter a rejeição das convenções como único denominador comum. Portanto, não é fácil estabelecer paralelismos, por exemplo, entre os Total Control e qualquer dos seus contemporâneos australianos. Foi este colectivo que, em 2011, quis (e conseguiu!) transportar a new-wave para o espaço sideral. O disco em questão chamava-se Henge Beat, e era um bom argumento para quem defende que ainda há alguma palavra a dizer em matéria da exploração do caldeirão post-punk.

Ainda melhor argumento para aquela tese é o novo Typical System, disco que nos leva a crer que a banda tenha dissecado ao pormenor do tríptico de álbuns inicial e fundamental dos britânicos Wire. As afinidades estéticas até nem são propriamente evidentes, mas há também nestes novos Total Control uma vontade de subverter as convenções da canção pop que é de assinalar. Em consequência, é um disco extremamente variado, característica que poderá também ser efeito das diferentes sensibilidades envolvidas, já que os elementos da banda ainda se ocupam com projectos paralelos bastante díspares, que vão da electrónica tout court ao hardcore mais ortodoxo, passando pelo rock mais sujo e disfuncional. Não se adivinhando se por por postura arty, se por militância convicta, Typical System tem em si algo de niilista, quer nos processos pouco óbvios, quer nas frases do tipo slogan que quase todas as canções repetem. Um passo à frente do seu antecessor, refreia o frenesim electrónico numa espécie de minimal wave revisitada, devidamente alternada com um bom número de temas mais orgânicos e abrasivos. Nestes, há nos Total Control uma austeridade que os aproxima da tensão dos Iceage. Mas, se os dinamarqueses são uma espécie de poseurs impenetráveis, os de Melbourne são condescendentes com o ritmo, nomeadamente por meio de um pulsar motorik que marca o compasso de quase todos os dez temas. Resumindo a coisa para os cépticos, Typical System é um disco de fontes facilmente identificáveis, mas combinadas com uma argúcia nada óbvia, algo só ao alcance das bandas com sangue na guelra. Como tal, tem a particularidade, de renovar a frescura e revelar novos detalhes a cada audição.

[Iron Lung, 2014]


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Cuidado com os rapazes!

















Se é verdade que aquela explosão "alternativa" do começo de noventas foi catalizadora de novas formas de rock-FM, tão bafientas como as anteriores, também é justo reconhecer que permitiu alguma visibilidade a bandas de valia que, de outra forma, estariam confinadas à ultra-obscuridade. Neste segmento inserem-se os californianos Geraldine Fibbers, nos quais pontificava a cantora Carla Bozulich, ela que tinha um passado ligado a projectos post-punk na linha provocatória de uma Lydia Lunch. Com esta a nova banda, mais formal enquanto tal, a frontwoman manteve a postura, mas enveredou por uma estética que reconhecia a country como pedra basilar. Com a entrada do guitarrista Nels Cline (actualmente nos Wilco), registou-se uma aproximação aos cânones rock, porém, com uma intensificação da veia experimental. Cantora e guitarrista haveriam de levar a transgressão dos conceitos pré-estabelecidos a um extremo nos breves Scarnella. Ainda e sempre na companhia do fiel seu fiel escudeiro, Carla Bozulich abraçaria de novo a country em The Red Headed Stranger (2003), releitura integral do clássico de Willie Nelson que caiu nas boas graças de alguns sectores mais atentos. No entanto, a obra maestra estaria para chegar ao terceiro álbum, de título genérico Evangelista (2006), e que fez dela a primeira artista não canadiana a editar pela Constellation Records. Com a ajuda de músicos ligados aos colectivos Thee Silver Mt. Zion e Godspeed You! Black Emperor, este era um disco de canções descarnadas e intensas, com o cunho cinemático característico dos convidados. A boa recepção a este trabalho, e a química entre músicos dele resultante, haveria de fazer com que Evangelista passasse a ser nome de banda, até esta data com três álbuns que são a progressão natural do trabalho inicial.

Entretanto, e desconhecendo-se o futuro da banda que lhe tem dado ocupação nos últimos anos, Carla Bozulich regressa aos discos em nome próprio com o novo Boy, anunciado pela própria como o seu álbum pop. Vindo de uma artista transgressora como ela, já se antevê a subjectividade que tal descrição pode conter. Com efeito, e apesar do esforço pela aproximação aos standards da canção, este é mais um trabalho de uma visceralidade alarmante. Ainda que não atentemos no conteúdo das palavras duras, pressente-se no tom hiper-dramático de Bozulich uma espécie de feminismo radical, qual animal ferido e, por consequência, pouco confiante no género oposto. A espaços, pela postura desafiadora e pelas abordagens despudoradas à sexualidade, é impossível não estabelecer afinidades com os universos de Patti Smith ou de Polly Jean Harvey. No entanto, Carla Bozulich é mais reverente que qualquer uma daquelas ao imenso caldeirão do americana. Consequentemente, Boy tanto pode ir beber aos blues e ao gospel como à folk apalachiana, embora sempre com uma tendência para a desconstrução própria de um Tom Waits por via dos inúmeros adereços improváveis. Assim, o ribombar da percussão atípica, o ranger das serras tocadas com arco, as cordas arranhadas, as guitarras desalinhadas e desafinadas, ou os apontamentos de uma electrónica tensa, espreitam sem pré-aviso por cada recanto de Boy. Por esta altura, julgo que já estarão perfeitamente convencidos de que este está longe de ser um disco pop, de qualquer artista. Mas é, seguramente, um dos trabalhos ainda assim mais próximos das convenções da autora e, por isso, porta de entrada recomendável no maravilhoso mundo (negro) de Carla Bozulich.

"Deeper Than The Well" [Constellation, 2014]

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Discos pe(r)didos #78









JOSEF K
The Only Fun In Town
[Postcard, 1981]




Se a breve história da lendária Postcard Records fosse esquematizada num triângulo, este teria de ser obrigatoriamente um triângulo invertido. Nos vértices do topo estariam os Orange Juice e os Aztec Camera, enquanto aos Josef K caberia o vértice inferior. Não querendo com esta figuração menorizar os últimos, o que é certo é que lhes faltava alguma da ousadia pop dos outros para os distinguir na manada post-punk. Por outro lado, não ostentavam a ambição pelo sucesso dos seus pares, algo que não sintonizava com os sonhos grandiosos do "patrão" Alan Horn para o Sound of Young Scotland. As diferenças de filosofia dos Josef K com aquelas bandas talvez não se fiquem a dever às origens geográficas (eram os intrusos de Edimburgo no seio da nata pop de Glasgow), mas antes a questões de postura deliberada (estudada?) e a diferentes fontes de referência.

Talvez por não serem uma máquina de singles - o formato pop por excelência -  tão evidente, o que é certo é que foi aos Josef K que calhou a sorte do único álbum lançado na existência primordial da Postcard. E até se deve acrescentar que The Only Fun In Town não foi propriamente um disco de parto fácil, já que a sua edição aconteceu a dois tempos: primeiro numa pequena tiragem, de título genérico Sorry For Laughing, com uma mistura demasiado "limpa" para as pretensões da banda; depois a versão definitiva, gravada ao vivo em estúdio num par de dias. Daqui retiramos a conclusão de que eram os Josef K gente inamovível nos seus princípios, uma pequena vaidade a que muitos personagens post-punk gostavam de se dar, apesar dos orçamentos disponíveis serem limitadíssimos. Ouvidos de enfiada, e à parte as diferenças de alinhamento, os dois registos não demonstram divergências significativas ao nível da estridência, mas para a posteridade ficou oficializada a versão concebida segundo as vontades da banda.

Curiosamente, "Sorry For Laughing", que havia sido o título escolhido para o disco rejeitado, é também o título do tema mais representativo dos Josef K, e aquele que encerra a escassa meia hora de duração de The Only Fun In Town. Nos seus pouco mais de três minutos de frenesim presta-se vassalagem à herança dos Velvet Underground, porém com a guitarra desalinhada de Malcolm Ross num galope que contrasta com o torpor narcótico daqueles. Esclareça-se desde já: por princípio, os Josef K eram gente avessa os aditivos da decadência do circo rock. As suas fontes de alienação eram outras, sobretudo baseadas em autores modernistas, como Camus, Dostoieveski e, claro está, Kafka, ou não fosse o nome da banda emprestado pelo protagonista d'O Processo. Por conseguinte, com uma dose razoável de pretensiosismo, os Josef K eram gente de uma austeridade pouco comum no meio pop-rock, algo apenas concebível no período temporal da sua existência. Como nem só de referências literárias se constrói uma reputação, também tinham heróis musicais, que para além dos citados Velvets, materializavam-se sobretudo nos Television, outro símbolo da subversão da linguagem rock com origem em Nova Iorque. A titulo de exemplo oiçam-se "Revelation", "The Angle", ou "Heart Of Song", com a secura da voz de Paul Haig numa colocação em tudo semelhante à do dandy Tom Verlaine. Já na guitarra, Malcolm Ross é incapaz do mesmo rigor técnico do "mestre", mas não o podemos acusar de não o tentar, com constantes invectivas de arestas rugosas.

Eventualmente pelo idêntico apreço pelos livros, é comum estabelecerem-se pontos de contacto entre os Josef K e os Joy Division. No entanto, os escoceses eram jovens apenas austeros, como que isolados do mundo numa bolha de presunção, enquanto os de Manchester (ou pelo menos o seu vocalista) eram gente positivamente perseguida por uma densa nuvem negra. Porém, há que reconhecer afinidades, quanto mais não seja no baixo profundo dos frenéticos "Fun 'N' Frenzy" e "Crazy To Exist", que apesar disso não ostentam qualquer indício de frieza, antes uma estranha propensão funky ao sabor daqueles tempos, assim numa nebulosa entre os Orange Juice, os Gang of Four, e os Talking Heads. O que ligava as duas bandas era, sobretudo, um respeito mútuo, e a quase valsa lúgubre do fabuloso "It's Kinda Funny" até foi escrita por Paul Haig em jeito de exéquia pela morte de Ian Curtis.

Tendo implodido logo em 1982, os Josef K não lograram mais do que um culto considerável nos países do Benelux, comum a outras bandas da época. Portanto, ficaram longe das aproximações aos tops de vendas dos comparsas da Postcard. Contudo, se tanto os Orange Juice como os Aztec Camera se podem gabar de dar início a uma nova era pop que vigorou em oitentas, o legado dos Josef K também é reconhecido no restrito mundo indie canónico, nomeadamente em muitas bandas nascidas e geradas pela emblemática C86, e tanto em termos estéticos como na filosofia un-rock que lhes era característica.

Sorry for Laughing by Josef K on Grooveshark

It's Kinda Funny by Josef K on Grooveshark

Crazy to Exist by Josef K on Grooveshark

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Here, there and everywhere















Pressinto não ser o único que há algum tempo deixou de seguir a facção dos "cantautores" (ou singer-songwiters, como se diz em americano), não tanto pelo fastio com a quantidade, mas mais pela falta de quem sobressaia da normalidade. Sou até capaz de localizar o momento do desinteresse no tempo, ali pela altura em que Ryan Adams perdeu o freio, ou quando Cat Power se rendeu ao estrelato e a xaropada, isto para agradar às meninas e aos meninos. Podem trazer-me o nome do consensual Bill Callahan à baila, que eu ripostarei que o trabalho de relevo desse está muito mais lá atrás, ainda não encaixado na categoria. Ou então invocar Will Oldham, que eu direi que esse extravasa a catalogação.

Vivemos nas nossas convicções e na nossa descrença, até que somos tentados pela dúvida quando tomamos contacto com a música de Sharon Van Etten, nem que para isso ela tenha de gravar três álbuns. A revelação, quase uma epifania, aconteceu precisamente ao terceiro, o excepcional Tramp (2012), seguramente um dos mais alarmantes discos da dor-de-corno de que há memória no passado recente, pela forma como a autora expõe as entranhas. É um trabalho ainda tenuemente enraizado na folk que, salvas as devidas distâncias estéticas, nos momentos de maior secura, faz-nos lembrar uma Polly Jean Harvey que há muito perdemos.

Ao quarto registo, o novo Are We There, Sharon ainda navega nas mesmas águas, o que significa que a matéria-prima das onze canções ainda é o complexo universo dos afectos, com acento tónico nas agruras dos mesmos. Até aí, nada de surpreendente. O que talvez não prevíssemos é que seria capaz de igualar o nível qualitativo do antecessor ou, talvez, até de o superar. Pode até ser do efeito da novidade, mas por enquanto sou da opinião que a superação acontece neste novo álbum. Por estranho que possa parecer, este disco é mais simples que Tramp, mas simultaneamente mais variado. A simplicidade advém da restrição dos adereços, que reduz cada tema ao básico essencial; a variedade deve-se à proliferação das canções ao piano, que agora reparte com a guitarra a maior fatia do suporte instrumental. O protagonismo, porém, é da voz de Sharon, com enorme contenção, mas com uma visceralidade nas palavras que chega para ter a força do grito mais lancinante. Are We There é também um disco que, sem se desligar das origens da autora, deixa enfraquecer os laços com a folk. E assim vai Sharon Van Etten, agora e sempre a debater-se com os demónios interiores, mas segura de que já conquistou espaço próprio e uma personalidade no contexto da música actual. Parece-me que isso é algo que ainda não podemos afirmar acerca de uma Angel Olsen, só para citar outra "cantautora" actual caída nas boas graças, à qual ainda falta decidir-se pela tentação à hiper-produção "modernaça", ou pela canção mais descarnada de cunho intimista.

Your Love is Killing Me by Sharon Van Etten on Grooveshark
[Jagjaguwar, 2014]

terça-feira, 15 de julho de 2014

O jogo das diferenças #30


SONIC YOUTH
Goo
[DGC, 1990]

THE TWILIGHT SAD
Killed My Parents And Hit The Road
[FatCat, 2008]

segunda-feira, 14 de julho de 2014

R.I.P.


TOMMY RAMONE
[1949-2014]

Com a morte de Thomas Erdelyi, imortalizado como Tommy Ramone, na passada sexta-feira, deixou o mundo dos vivos o último resistente da formação original dos Ramones. Portanto, fazia parte do gang dos quatro responsáveis pelo seminal álbum homónimo de estreia de 1976, na origem das sementes punk que se disseminariam logo a seguir no Reino Unido, e também percursor da ingenuidade que estaria na base da vaga twee pop que eclodiria no mesmo território na segunda metade de oitentas. A fórmula, caracterizada pela simplicidade dos "três acordes", mais não era do que a aceleração de canções baseadas no espírito pop dos Beach Boys e dos girl groups de sessentas ligados a Phil Spector.

Judeu de ascendência húngara, Erdelyi tinha já alguma experiência de estúdio como engenheiro de som quando se juntou aos restantes Ramones: Joey, Johnny e Dee Dee. Curiosamente, o seu papel original na banda foi o de manager, que acumulou com o de baterista quando se percebeu da inaptidão de Joey Ramone, que transitaria para vocalista, para a rapidez dos tempos das canções. Simultaneamente, foi co-produtor dos três primeiros álbuns da banda, precisamente aqueles em que fez parte da sua formação. Abandonou o seu lugar no quarteto em 1978, cedendo o lugar a Marky Ramone. Como manager, convenceu Phil Spector a produzir End Of The Century (1980), escolha óbvia atendendo à devoção dos Ramones pelas pérolas pop criadas por aquele. Ele próprio regressou à cadeira da produção para Too Tough To Die (1984), eventualmente o último trabalho indispensável da banda. Sensivelmente pela mesma altura, produziu Tim (1985), disco superlativo dos The Replacements, então coqueluches do circuito das college radios norte-americanas. O afastamento definitivo dos Ramones não foi totalmente pacífico, e coincidiu com o começo do declínio, até à caricatura hard rock em que se transformaram algures na década de 1990. Por acaso, tem sido Marky, o substituto de Tommy, que em nome próprio, mas com o legado da banda que lhe deu fama, quem tem vindo a perpetuar a longa agonia dos Ramones ao serviço do circo rock'n'roll, ao qual eram primordialmente figuras estranhas. 

No momento do luto por Tommy Ramone, constato que, por ironia do destino, foram apenas necessários treze escassos anos para que o cancro (e a heroína, no caso de Dee Dee), dizimasse a totalidade dos membros originais da banda que melhor personificou a eterna adolescência. Now, I wanna sniff some glue.

Blitzkrieg Bop by Ramones on Grooveshark
[Sire,1976]

I Wanna Be Your Boyfriend by Ramones on Grooveshark
[Sire, 1976]

Rockaway Beach by Ramones on Grooveshark
[Sire, 1977]

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Good cover versions #84















PAUL QUINN & EDWYN COLLINS - "Pale Blue Eyes" [Swamplands, 1984]
[Original: The Velvet Underground (1969)]

Perdoem-me a heresia, mas, sem qualquer desprimor para os dois primeiros trabalhos dos The Velvet Undeground, ultimamente ando mais inclinado para atribuir ao terceiro - e homónimo - álbum o estatuto de obra magna da banda. É certa e sabida a herança ao nível da influência do "disco da banana" (1967), embora tenhamos que reconhecer que em certa medida é um exercício de estilo da decadência encenado por Andy Warhol, o qual ainda impingiu à banda a presença gélida de Nico, com a inerente aura fatal. Também é verdade que White Light/White Heat (1968) é o apogeu da experimentação dos Velvets, por via da formação académica de John Cale, embora seja um disco que, pelas suas características, exija predisposição para a audição.

Já o terceiro The Velvet Undeground, e primeiro após a partida do erudito galês, é o disco em que Lou Reed se liberta de quaisquer as amarras, assume o comando absoluto, e revela-se como mestre escritor de canções. Ao todo são dez as canções, ternas, melancólicas, românticas, e reduzidas à essência, e entre elas sobressai "Pale Blue Eyes". Quase o paradigma da pura canção de amor, este tema é desprovido de qualquer adiposidade, reduzindo-se à linha de guitarra delicada, à pandeireta apenas para marcar compasso, e à voz de Reed num estado de encantamento que lhe era desconhecido. O simplismo da produção, quase como se o tema tivesse sido gravado dentro de um armário, é uma mais-valia ao nível do intimismo e da proximidade com o ouvinte.

Entre os muitos herdeiros - e talvez dos primeiros reconhecidos como tal - dos Velvets destaca-se Edwyn Collins, que ao leme dos Orange Juice cometeu a proeza de conjugar o minimalismo dos nova-iorquinos com os ritmos funk e soul. Seu já velho comparsa dos tempos de escola em Glasgow, colaborador pontual nos coros dos Orange Juice, e vocalista dos promissores mas efémeros Bourgie Bourgie, Paul Quinn tem a voz indicada para extrair de "Pale Blue Eyes" a essência da beleza em forma de canção pop. A versão que ambos fazem é reverente, é certo, mas ao mesmo tempo muito personalizada, aspirando à grandiosidade por oposição à discrição do original. Collins remete-se à guitarra, que fiel ponto por ponto exala uma surpreendente luminosidade que estava totalmente ausente da quase letargia da génese. O resto, que aqui se traduz pelo papel principal, é a voz de Quinn, cantor dado ao dramatismo acentuado, que realça o romantismo da canção, não sem injectar também algo de iminentemente trágico.