"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel
Para o bem e para o mal, 2013 há-de ficar lembrado como o ano de todos os regressos. Quem me lembre assim de repente, de bandas que não estivessem oficialmente extintas, já tivemos nova música de My Bloody Valentine, The Pastels, e Pixies, tudo gente com bem mais do que uma década de inactividade editorial. Para juntar ao rol faltavam os magníficos Sebadoh, sem álbum novo há catorze anos, mas com EP para aguçar o apetite ainda no ano passado, na altura com promessa de longa-duração no corrente.
A promessa foi cumprida na semana passada com Defend Yourself, disco que faz rejubilar todos aqueles que já sentiam falta de canções novas da banda que, mais que nenhuma outra, definiu a cartilha indie-pop/rock. Antes de mais, e para que não entrem em euforias desmedidas, convém esclarecer que apesar de excelente, o novo álbum está longe de atingir o nível de excelência de III (1991) ou Bakesale (1994), o que, convenhamos, não era fácil. Mas, felizmente, não sendo propriamente um tratado de "baixa-fidelidade", também não padece da incaracterística sobre-produção do anterior e mal amado The Sebadoh (1999). Já que falámos de III, digamos que, com este, Defend Yourself tem em comum as muitas viragens bruscas, da rispidez rock para o sentimentalismo melódico, e vice-versa. Dividida quase democraticamente a tarefa da composição, cabe maioritariamente a Jason Loewenstein o lote de temas mais rudes e ruidosos. Já Lou Barlow, aparentemente de bem com a vida e de regresso aos Dinosaur Jr. para o escapismo noisy, deixa fluir a faceta de eterno pinga-amor em mais que dois pares de canções belíssimas. Nestes, pressente-se uma doçura que estava ausente nos célebres exemplares de dor-de-corno do passado, estabelecendo alguma familiaridade com os temas gravados com os Folk Implosion, um dos seus vários projectos ocupacionais. Em suma, nada de particularmente novo, apenas algo mais do mesmo, o que para quem sofre de sebadohnite aguda já é o bastante.
Nisto da música pop, tal como no mundo do futebol, os País de Gales sempre foi o parente pobre face aos restantes países das ilhas britânicas. Pelo menos no que se refere à quantidade, insuficiente nas coisas da bola para o apuramento para uma grande competição, apesar da qualidade indiscutível de gente como Gareth Bale ou Aaron Ramsey, para nos situarmos apenas no presente. Na música também tem sido mais ou menos assim, com uma ou outra banda galesa a intrometer-se esporadicamente no domínio inglês e escocês, com a vantagem de normalmente se destacar pela diferença. Parece-me que nem é preciso referir os devaneios em galês para distinguir da manada o psicadelismo solarengo de uns Gorky's Zygotic Mynci ou a pop caleidoscópica de uns Super Furry Animals. Até mesmo os Manic Street Preachers, alinhados por formas mais "clássicas" do rock, sempre se destacaram pela paixão politizada que os tem movido.
No presente, e na vaga revisionista das heranças indie pós-C86, o País de Gales tem para oferecer os Joanna Gruesome, quinteto de Cardiff que se distingue da concorrência por uma irreverência que vai muito para além da piada de gosto duvidoso do nome da banda. Depois de uns quantos singles que fizeram algum furor nos circuitos próprios, a banda acaba de se estrear em formato longo com Weird Sister, um cocktail explosivo de algumas das expressões indie pop em voga entre finais de oitentas e inícios de noventas. Assim, a maioria dos temas caracteriza-se por uma dose generosa de sacarina, embalada em torrentes de fuzz, tal como faziam os saudosos Swirlies ou os My Bloody Valentine da "era You Made Me Realise". Em contraponto à doçura, a vocalista Alanna McArdle é a a porta-voz de alguma verborreia característica do vaga riot grrrl, endereçando recados pouco simpáticos sobre sexismo e homofobia. Ainda na linha dura, Weird Sisters caracteriza-se ainda por uma crueza panfletária, comum com algumas manifestações do pós-hardcore norte-americano. No meio da tempestade sónica e da acidez verbal, os Joanna Gruesome também precisam de parar para recuperar o fólego, remetendo nestes interlúdios de acalmia para a tweeness dos incontornáveis Black Tambourine ou do contigente da K Records. Explicado assim na teoria, Weird Sister até pode ser comparado aos intentos dos primeiros The Pains of Being Pure at Heart ou dos britânicos The History of Apple Pie. Mas só em teoria, pois na prática falta àqueles o nervo que sobra aos Joanna Gruesome. E as canções, também...
Em parte por culpa nossa, sempre ávidos de novidades, mas sobretudo por culpa dos próprios intervenientes, dificilmente uma banda do presente nos consegue satisfazer ao segundo disco da forma que nos entusiasmou na estreia. Há excepções, claro, e uma das primeiras que me ocorrem são os nova- iorquinos Crystal Stilts, autores do debutante Alight Of Night (2008), que filtrava o sentir urbano de uns Velvet Underground pelas referências a muitos dos descendentes indie de oitentas. Três anos mais tarde aprimoravam a fórmula no fulgurante In Love With Oblivion, e reincidiam com o EP Radiant Door, exemplo de extremo bom-gosto na escolha de versões. Em qualquer destes trabalhos, não obstante o denso negrume que os cobria, a banda teve a destreza de não cair no embaraçoso tique "gótico". A cada novo registo, a pergunta era sempre a mesma: conseguirão os Crystal Stilts manter o nível qualitativo elevado?
Escutado com alguma insistência o novíssimo Nature Noir, a resposta à pergunta acima é "sim". E ainda com a vantagem de, sem subverter uma identidade, os Crystal Stilts esquivam-se subtilmente à repetição da fórmula ganhadora. Não é que tenham enveredado por uma sonoridade mais sofisticada, como sugeria a novidade da secção de cordas no avanço mais abaixo; bem pelo contrário, a maioria dos temas surge agora reduzida a formas esqueléticas por via do afrouxamento da reveberação que era usada e abusada no passado. Há nesta nova dezena de temas ainda a mesma tensão urbana, a mesma sugestão de cenários nocturnos, e a sombra dos Velvets ainda indica o norte, embora desta feita de uma fase mais avançada, aquela já libertos das garras de Andy Warhol. Um dos mais fieis discípulo daqueles - Dean Wareham - é muitas vezes lembrado pelo timbre de Brad Hargett, que na maior parte do tempo faz questão de reduzir a gravidade do seu barítono.
Vivemos rodeados dessa espécie de bandas-tributo, bandas que, na falta de ideias e na segurança da fórmula, se limitam à colagem descarada de outras bandas do passado. Questionaria a utilidade de tais exercícios, quando pudemos usufruir com ganhos da real thing, mas temo que me chamem "do contra". Felizmente, há outra estirpe, mais recomendável, capaz de se afirmar na súmula de diferentes referências. Uma delas são os neozelandeses Surf City que, com um EP homónimo em 2008 e o álbum Kudos dois anos depois, foram capazes de resumir à sua maneira o rico legado indie pop do seu país de origem. Num ritmo frenético, por vezes difícil de acompanhar tal a profusão de elementos, combinavam a jangle pop com pitadas de psicadelia de uns The Clean ou The Chills com tonalidades surf rock que faziam jus ao nome da banda.
De então para cá, confesso que lhes perdi o rasto, derivado talvez da escassez de novidades. Soube do regresso há pouco, e que agora vinham reduzidos a um trio. São agora parte do numeroso contingente das antípodas na britânica Fire Records, que patrocina a ligeira transmutação da sonoridade dos Surf City. Com selo daquela editora, saiu, há coisa de um mês, o álbum We Knew It Was Not Going To Be Like This, conjunto de nove canções mais escorreitas do que era costume na banda de Auckland. Não se conclua já que os Surf City enveredaram por uma pop "limpinha", pois a "baixa fidelidade" ainda é um lema; apenas apostaram em temas mais directos, sem aquela mixórdia de estilos, por vezes vertiginosa. A psicadelia ainda diz presente e, aqui e ali, há um nova vontade de transgressão com uma pulsão kraut à espreita. Esquecida ficou a tendência surf rock, mas nem sempre os nomes das bandas têm de fazer sentido.
Matthew Barnes é um artista britânico: fotógrafo, produtor, e também músico. Foi nesta última condição que, sob o alter egoForest Swords, editou Dagger Paths (2010), um EP de seis temas que, ainda que não tivesse sucessão, lhe bastaria para figurar entre os grandes arquitectos paisagistas sonoros do nosso tempo. Disco de tonalidades densas, aquele inspira-se na cultura samurai, algo que, na escassez de palavras, exprime nos beats cortantes, suportados por texturas de guitarras áridas. Como se depreende, é um trabalho de difícil catalogação, que resgata Barnes à exiguidade do universo electrónico.
Talvez consciente da fugacidade do estado de graça no mundo contemporâneo, o artista tardou a dar-lhe continuidade, algo que apenas sucedeu há poucas semanas com o sublime álbum Engravings. Obviamente que o longo hiato de três anos produziu desenvolvimentos estéticos, o que não significa que a linguagem própria de Barnes tenha sido descaracterizada. É igualmente uma obra de difícil rotulagem, embora nos sintamos tentados a arrumá-la na ambiguidade do pós-dubstep, se bem que numa linhagem ostensiva que contrasta, por exemplo, com a política de economia baseada em pormenores de lenta libertação do "mago" Burial. Em Engravings persiste alguma da densidade do antecessor, se bem que amainada. O rigor dos beats sugere ainda paisagens de desolação depois de devoradas pelas fogo, embora a tensão seja abreviada pela maior delicadeza das guitarras. As vozes surgem amiúde, apesar de dificilmente se discernirem quaisquer palavras, o que cobre o todo com um ténue manto de mistério. Da dosagem equilibrada dos diferentes ingredientes e temperos, Matthew Barnes, conseguiu um disco que, não obstante uma ligeira queda para o experimentalismo, será capaz de arrebatar um público muito mais vasto do que o do restrito nicho das electrónicas e derivados.
Como se reage ao sucesso desmesurado, inesperado e, a julgar pelas declarações avulsas dos intervenientes, indesejado? Bem, no caso dos Nirvana, que num ápice se viram catapultados dos confins do submundo indie americano para o estrelato planetário, a reacção foi recorrer, no álbum pós-boom, aos serviços daquele que na altura personificava o espírito independente do underground: Steve Albini. Além disso, outros motivos poderão ter estado na base da escolha deste verdadeiro enfant terrible para o corporativismo para as funções de produtor (ou "gravador", como prefere ser tratado) dos Nirvana, tais como o seu passado nos influentes Big Black, ou o idêntico papel que havia desempenhado nos discos Surfer Rosa (Pixies) e Rid Of Me (PJ Harvey), ambos trabalhos louvados por Kurt Cobain. Por outro lado, era pública a insatisfação do frontman do trio de Seattle com o trabalho lustroso de Butch Vig em Nevermind (1991). Neste particular, penso que o desgaste do tempo acabaria por lhe dar razão. Reza a lenda que, com a contratação de Albini, soaram as sirenes de alarme nos escritório da Geffen, com os executivos a temerem um disco "difícil", um autêntico suicídio comercial de dedo médio em riste.
Curiosamente, e apesar da crueza e da secura características das gravações do Midas de Chicago serem evidentes, In Utero acabaria por ser veículo para o conjunto de canções mais bem acabadas do escasso mas rico espólio dos Nirvana. Diria mesmo que, se necessárias fossem ainda provas da excepcional qualidade de Cobain como escritor de canções, quase todos estes doze temas são o atestado definitivo de genialidade. Não obstante a linearidade das faixas, In Utero é um trabalho de uma violência emocional em estado bruto, um autêntico murro no estômago que expõe ao mundo do âmago do seu principal autor, notoriamente transtornado pelas convulsões trazidas da excessiva exposição mediática. Esse grito de revolta ganha eco na música nos temas mais viscerais, feitos de tensão e silvos de distorção, como "Scentless Apprentice" e "Milk It". O primeiro, inspirado no romance O Perfume de Patrick Süskind, é particularmente demolidor, um dos muitos motivos que nos faz desejar que Dave Grohl jamais tivesse saído de trás de uma bateria. As raízes de punk não foram postas de lado, e são afloradas em "Very Ape" e "Radio Friendly Unit Shifter", temas de estrutura mais simples mas de maior reboliço. No extremo oposto desta rudeza estão "Dumb" e "All Apologies", dupla de canções representante de uma quase tradição de os Nirvana encerrarem cada lado dos seus álbuns em toada mais calma e acústica. Se visto como um epitáfio antecipado dos tristes acontecimentos de pouco mais de meio ano mais tarde, o último é uma confissão verdadeiramente tocante na sinceridade, sem qualquer espécie de lamúrias ou de vitimização
Se o atrás descrito nada acrescenta ao que já fora desenvolvido no par de discos anteriores dos Nirvana, temos de esclarecer que In Utero é aquele em Kurt Cobain não se inibe de tratar questões pessoais, não se limitando a abordar experiências alheias como era hábito. Em "Serve The Servants", que abre o disco, fica explícita a rejeição de ser porta-voz de uma geração, tanto por falta de vontade como por inaptidão, enquanto "Heart-Shaped Box", eventualmente o mais sublime pedaço de música saído da pena de Cobain, é um cruel tratado de intimidade exposta. Pese embora as múltiplas interpretações que permita, é mais ou menos ponte assente que aborde a ambiguidade de sentimentos da recente paternidade, bem como a tumultuosa relação com Courtney Love, não deixando claro se por responsabilidades próprias, se por intervenção das coscuvilhices dos media. A empatia pelos deserdados da sorte na vida real é também recorrente, e em In Utero materializa-se no visceral e controverso "Rape Me" e no devoto "Frances Farmer Will Have Her Revenge On Seattle", este obviamente inspirado pela actriz alvo de uma lobotomia por parte dos discutíveis critérios médicos dos tempos do pós-guerra. No primeiro, há lugar para a ironia por via da auto-citação, com a abertura a recuperar os acordes iniciais do massivo "Smells Like Teen Spirit", enquanto o último representa a dinâmica quiet-loud-quiet, que sai aprimorada em In Utero. Esta fórmula, talvez surripiada aos Pixies, que se tornou característica nos Nirvana sai também reforçada por "Pennyroyal Tea" e o já citado "Heart-Shaped Box".
Apesar do contentamento dos Nirvana face ao resultado final global, a relação com Steve Albini não deixou de ter os seus atritos. As divergências subiram de tom quando o produtor acusou a banda de cedências às interferências da editora, o que mereceu do trio alegações de opções próprias. Tudo isto pela decisão de contratar Scott Litt, habitual produtor dos R.E.M., para novas misturas de um par de temas ("Heart-Shaped Box" e "All Apologies"), por sinal aqueles que acabariam por ser escolhidos para singles promocionais. Dentro de dias, por ocasião do lançamento da edição comemorativa do 20.º aniversário de In Utero, vamos finalmente ficar a conhecer as misturas inicialmente propostas por Albini, que julgávamos para sempre vedadas ao público. Serão assim tão diferentes, ao ponto de termos de reescrever uma versão alternativa da História?
Nem sequer temos certezas de que Dean Blunt seja o seu nome verdadeiro, porque ele é dado ao mistério, mas sabemos que é um dos músicos mais desafiantes e isolados dos nossos tempos. Gosta pouco de perder tempo com os media, aproveitando esse mesmo tempo para produzir música em quantidade e qualidade, com a particularidade de nos surpreender amiúde com as mudanças de identidade, normalmente coincidentes com o ziguezaguear estético. Primeiro, e em parceria com Inga Copeland, gravou como Hype Williams, designação que a dupla abandonou talvez por questões legais, assumindo os nomes próprios nos lançamentos seguintes. Ao mesmo tempo, Dean Blunt iniciou uma série de obras em nome pessoal, nos quais a velha companheira tem sido uma das muitas presenças femininas.
O músico dos trabalhos "a solo" está já muito distante daquele que se revelou como um dos recuperadores da minimal wave, roçada ao de leve porque Dean Blunt não é daqueles que se limitam a fazer uso do papel de carbono. Já no decorrer deste ano deixou meio mundo boquiaberto com The Redeemer, um disco apaixonante daquilo a que se podem chamar canções, com uma voz quente, quase soul. Este álbum é o segundo passo - o da redenção, como o título indica - de um percurso iniciado em The Narcissist II, um EP com uma única faixa dividida em trechos de diálogos algo violentos de um casal em notória crise. Entretanto, coberto de algum secretismo, já chegou o novo fascículo desta novela da intimidade. Chama-se Stone Island (ou Каменный остров, se preferirem) e foi concebido e registado numa única noite num quarto de hotel em Moscovo. Tecnicamente, tanto poderá ser um álbum (10 faixas) como um EP (23 minutos de duração), mas sobretudo é um complemento a The Redeemer, sem o mesmo rigor técnico, mas com significativas afinidades sonoras. Fazendo uso de samples facilmente reconhecíveis, mas trabalhados em temas perfeitamente pessoais, Dean Blunt conta-nos os novos desenvolvimentos da referida novela da vida privada, agora numa fase de altos e baixos. Resumindo, Stone Island não traz propriamente novidades de monta mas é mais um trabalho essencial deste músico de excepção, sobretudo para completistas, e um bom ponto de partida para curiosos. Até porque tem a particularidade de ser de distribuição gratuita: aqui.
No contexto da música popular britânica, e após o manancial post-punk, ainda não ocorreu - e dificilmente voltará a ocorrer, quase aposto - período mais fervilhante que aquele que vai de final de oitentas a inícios de noventas, décadas do século passado. As revoluções da electrónica e da música de dança terão dado o seu contributo, e as tendências baggy e shoegaze serão as faces mais visíveis da época, mas houve algo mais que, longe dos olhares e dos ouvidos das massas e não alinhado em tendências, conferiu àquele período uma extrema riqueza de ideias, abrindo infindáveis possibilidades para um futuro que acabaria por não ser assim tão radioso. Foram tempos de discos charneira, obras que, desde então, têm sido matéria de estudo para as sucessivas gerações de músicos. Da época, é obrigatório citar Spirit Of Eden dos Talk Talk, Loveless dos My Bloody Valentine, e Hex dos Bark Psychosis, separados nas extremidades por meia dúzia de anos mas entremeados por trabalhos de idêntica relevância.
Ao rol acima penso que é justo acrescentar o álbum de estreia dos Seefeel, um quarteto londrino que escassos meses antes tinha editado um par de EPs deslumbrados com as ambiências electrónicas criadas por um jovem Richard D. James, a.k.a. Aphex Twin. Quique é já um produto distinto, absolutamente personalizado e incomparável, uma amálgama espectral e inclassificável para a qual convergem a dream/ambient pop, o dub, a electrónica abstracta, e as técnicas do minimalismo. O resultado está muito para além do espartilho shoegaze, para o qual muitas vezes os Seefeel são erradamente confinados. Com esta difusão de linguagens sonoras, é natural que o ouvinte médio sinta alguma estranheza pela falta de um ponto de orientação, mas os que arriscam o desafio de Quique, quase invariavelmente ficam rendidos a um disco fascinante. Curiosamente, é um trabalho instrumental na essência, se exceptuarmos as esporádicas aparições dos murmúrios quase imperceptíveis da sereia Sarah Peacock. Além disso, esta surge de tal forma imersa na mistura final, que funciona mais como um instrumento. Nas guitarras e nos sequenciadores, Mark Clifford é o estratega do processo, o timoneiro responsável pelo idealizar de diferentes cenários: ora paisagens idílicas, ora atmosferas plúmbeas, sempre com a mesma envolvência quase adictícia. Embora muitas vezes se reduza os Seefeel a uma sombra dos My Bloody Valentine de então, a comparação resulta infeliz, simplesmente porque - à semelhança de muitos contemporâneos - eram uma ilha isolada no contexto em que Quique foi concebido. Talvez, apenas pelas similaridades nos processos, nunca por afinidades estéticas, estivessem mais próximos de uns Flying Saucer Attack, embora estes se "limitassem" a somar possibilidades ao já desbravado universo do space-rock.
Desde que os Seefeel interromperam um longo período de inactividade, há coisa de uma meia dúzia de anos, Quique tem sido alvo de várias reedições. Talvez a mais recomendável seja a versão Redux, lançada pela Warp Records, para a qual o quarteto se mudou após a estreia introduzindo as guitarras numa editora até aí exclusivamente dedicada à electrónica. Nesta dispõem de um segundo disco apenas com remisturas levadas a cabo por almas-gémeas, visões alternativas que realçam muito do apelo sensorial dos originais. Para os rendidos à retromania, talvez seja apetecível a recente reedição em vinil, comemorativa do 20.º aniversário. Esta tem selo da norte-americana Light in the Attic, editora especializada neste tipo de produtos, já com um catálogo capaz de nos fazer perder a cabeça.
Nunca fui partidário daquele puritanismo indie que condena os regressos ao activo ao serviço da indústria da saudade. Afinal de contas, o dinheiro faz falta a todos, e até acaba por se repor alguma justiça tardia quando as bandas conseguem os proveitos financeiros não obtidos com o estatuto de culto underground da primeira vida. Talvez o caso mais vezes referido seja o dos Pixies, regressados aos palcos há uma década, possibilitando que milhões de pessoas que ainda gatinhavam quando eles revolucionaram o indie-rock americano presenciassem in loco o porquê da lenda. Ao quarteto de Boston só tenho a apontar a falta de música nova, algo que, segundo os próprios, foi tentado mas rapidamente abandonado alegadamente por falta de química. Recuperada essa tentativa, quase dez anos depois de ser concebida, temos de concordar com a sensatez de tal opção.
Os anos passaram, entretanto Kim Deal abandonou o barco para se dedicar a projectos pessoais e, de repente, os Pixies desatam a gravar e a lançar novos temas, o que nos leva a crer que fosse imposição da baixista o hiato criativo e editorial. Ainda o lugar vago não tinha arrefecido e já o mundo era presenteado com "Bagboy", um tema que, sejamos francos, não superava a anterior tentativa. Pouco tempo volvido, mais precisamente a semana passada, fomos surpreendidos pelos quatro temas que compõem o singelamente intitulado EP 1, que é anunciado como o primeiro de vários registos do género nos próximos meses em regime de auto-edição. Para uma banda com um silêncio tão longo, ainda para mais com o peso da herança dos Pixies, um novo disco é sempre motivo de opiniões diametralmente opostas. Têm ganho força as reacções negativas que, desconfio, vêm de gente que esperava a mesma gritaria disfuncional de outrora. Ora, não sejamos ingénuos, pois a veia melódica agora assumida já era latente em Trompe Le Monde (1991) e evidente no percurso a solo de Black Francis rebaptizado de Frank Black.
Pela parte que me toca, e embora não deslumbrado, sinto-me suficientemente agradado com EP 1. Principalmente com "Indie City", delírio de perversão entre o falado e o cantado mas com alto teor pop que, em certa medida, remete para "Motorway To Roswell", soberbo tema daquele derradeiro álbum que com o tempo tem sido reapreciado em alta, mas tomado pela preguiça. A grande surpresa é introduzida por "Andro Queen", a costumeira história sci-fi, mas recheada de efeitos na voz e com um travo de psicadelia inaudito. Uns furos abaixo desta parelha, embora perfeitamente aceitáveis, os restantes dois temas são "Another Toe In The Ocean" e "What Goes Boom", o primeiro uma canção da escola da pop vitaminada dos Ramones, e o segundo pura adrenalina capaz de fazer inveja a músicos novatos com menos 30 anos. Entretanto, os Pixies já anunciaram a baixista substituta da desertora, curiosamente com o mesmo nome próprio. É ela Kim Shattuck, também vocalista dos punk-poppers The Muffs e ex-guitarrista das saudosas The Pandoras que, no entanto, ainda não participou das gravações de EP 1.
À lista de concertos de sonho cumpridos ainda faltava acrescentar o nome dos Built to Spill. Não que ainda não tivesse havido oportunidade, mas na altura entendi que não estavam reunidas as condições ideais para uma experiência de quase religiosidade. A agradável surpresa, tanto mais nos tempos que correm em que apenas a última modinha inexplicável esgota bilhetes em minutos, é que o público era em bom número, mas ainda assim insuficiente para a imensidão desta banda, uma das poucas que restam impolutas da geração de noventas. Claramente, e porque os Built to Spill são banda de paixões que não se explicam pela divulgação nos media, na audiência escasseavam os curiosos, dando ao concerto um ambiente especial reservado a fieis.
Portanto, a ocasião revestia-se de grande exigência, acrescida pelo facto de se tratar de uma estreia há muito esperada em solo nacional. Mas nada que intimidasse Doug Martsch e seus pares, como é expectável de alguém que já adquiriu o insólito estatuto de guitar hero do universo indie e tem no reportório muitas das canções mais intensamente brilhantes destes últimos vinte anos. Intensidade era precisamente o que se esperava deste autor de temas de uma tristeza e beleza alarmantes, tristes sem dramatismos excessivos, belos sem lamechices, apenas e só a expressão em canção do íntimo de gente vulgar como nós. Com um vasto leque de escolhas só possível a bandas ainda do tempo em que se faziam carreiras, os Built to Spill souberam dosear essa intensidade num engenhoso alinhamento em crescendo de envolvimento banda-público. Para o começo reservaram essencialmente temas dos últimos trabalhos, mais complexos e ricos em variantes texturais, com primazia às longas derivas instrumentais. Portanto, esta foi a fase em que o nasalado à la Neil Young de Martsch teve apenas aparições esporádicas, surgindo a reverência ao mestre canadiano sobretudo nas cavalgadas das guitarras. Quebrado o gelo, com o avanço do concerto, Doug Martsch soltou-se com tiradas de um humor seco, mas fazendo a vontade ao público com várias escolhas dos superlativos discos Perfect From Now On (1997) e Keep It Like A Secret (1999). Nesta fase os arrepios sucederam-se, culminando invariavelmente em aplausos vigorosos e sinceros. Ao todo, com um longo encore incluído, foi mais de uma hora e meia de emoções fortes e mestria instrumental, com direito a dois temas alheios: "Here" dos Pavement e "How Soon Is Now?" dos Smiths. Se o primeiro era mais previsível, foi também mais fiel ao original, enquanto o segundo, que encerrou a contenda, é uma autêntica e inesperada apropriação.
A árdua tarefa de abrir a noite de altas expectativas (cumpridas) coube aos suíços Disco Boom, que souberam aproveitar a presença de um público de feição. Quarteto aparentemente já com alguma rodagem, são uma súmula do mesmo cenário "alternativo" que viu nascer os Built to Spill, deixando ecoar referências de gente como os saudosos Unwound, os Sonic Youth, ou até os próprios cabeças de cartaz. Porém, cada tema reveste-se de uma imprevisibilidade que confere bastante carisma à banda de Zurique.
KIRSTY MacCOLL _ "A New England"[Stiff, 1984] [Original: Billy Bragg (1983)]
A memória colectiva não tem sido justa para com Kirsty MacColl, desaparecida, prematuramente, há quase 13 anos. Alguns quantos ainda se lembrarão dela ao lado dos Pogues na mais insólita canção tornada hino natalício, outros referem-na apenas como a esposa de Steve Lillywhite, produtor ligado aos U2 e a outros nomes grandes de oitentas. É muito pouco reconhecimento para uma das poucas vozes femininas que se afirmaram no contexto maioritariamente masculino da new-wave britânica, uma mulher que encarnou a englishness com a mesma dedicação de homens como Ray Davies, Elvis Costello, ou Billy Bragg.
Os sucessos na carreira não foram propriamente massivos, é certo, e o maior deles terá sido "A New England", precisamente uma versão de um original daquele último que, eventualmente, terá servido para catapultar o então quase desconhecido Billy Bragg para plateias mais vastas. A versão foi concebida com o aval do próprio autor, que propositadamente escreveu mais uns quantos versos para a letra. Contudo, Kirsty não fez questão de a readaptar em termos de género, deixando no ar uma pequena provocação de ambiguidade sexual. Se bem se lembram este foi o tema que serviu de cartão de visita a Billy Bragg, o futuro porta-estandarte das esquerdas políticas que, antevendo o que lhe estava reservado, atirava com versos que resumem as motivações rock'n'roll, acima de qualquer ideal: "I don't want to change the world / I'm not looking for a new England / I'm just looking for another girl". O mesmo não se pode dizer do registo musical adoptado, substancialmente distante da rispidez da guitarra eléctrica solitária dos primeiros tempos de Bragg, numa proposta pop gingona com guitarra jangly muito próxima daquilo que os Smiths faziam na altura. Curiosamente, Jonhnny Marr era um dos músicos próximos de Kirsty MacColl à data da sua morte, depois de algumas colaborações entre ambos.
Não é preciso recuar muito no tempo, nem sequer uma mão-cheia de anos, para vislumbramos uma Austrália como pátria de inúmeras aberrações musicais. Tenho de vos confessar que, na altura, com a sucessão de sonoridades garridas que iam chegando daquelas paragens e me faziam amaldiçoar a década de oitentas, cheguei a ponderar se estava em contra-mão do resto do mundo, ou se todo o mundo tinha ensandecido e perdido qualquer critério de bom-gosto. Tudo passou, felizmente, e hoje o cenário musical da ilha dos cangurus é bem distinto. Diria até que é dos mais excitantes actualmente no planeta, com o surgimento de um número considerável de bandas, sobretudo dadas à psicadelia, a apresentarem discos com propostas bastante arrojadas.
Uma dessas bandas, que na realidade já anda por aí há uma meia dúzia de anos, são os Blank Realm, um quarteto que inclui na formação três irmãos. São originários da cidade costeira de Brisbane, terra dos lendários The Go-Betweens, mas a sua sonoridade não poderia estar mais distante daquele vulto da música australiana. Chegam aos ouvidos do mundo a reboque da britânica Fire Records, ultimamente muito apostada no melhor que se vai fazendo nas antípodas, editora responsável há uns meses pela edição europeia de Go Easy, álbum lançado na Austrália em finais de 2012 numa tiragem limitadíssima. Aproveitando a leva, a Fire acaba também de reeditar o antecessor Deja What? (2010) para o mercado europeu. Se neste disco de estreia, percorrido por devaneios psicadélicos experimentalistas, já se pressentia alguma acessibilidade para o ouvinte médio, a fórmula surge aprimorada no sucessor. Fazendo jus ao nome, Go Easy vem recheado de canções dignas desse nome, não obstante a aura de alienação que o caracteriza. Ao percorrermos os seus oito temas, detectamos ecos bluesy de uns Royal Trux, guitarras jangle emprestadas da vizinha Nova Zelândia, alguma frieza característica de várias expressões post-punk, e delírios cósmicos de uns Flaming Lips do bom tempo. No entanto, estas e mais referências surgem de tal forma difusas no todo, que, não nos resta outra opção que não seja classificar a proposta dos Blank Realm deveras personalizada.
"Cleaning Up My Mess"[Bedroom Suck, 2012 / Fire, 2013]
GIRLS AGAINST BOYS Venus Luxure No. 1 Baby [Touch and Go, 1993]
Num exercício de memória para os mais atentos às movimentações underground, recuemos até a inícios de noventas, e recordemos as possibilidades abertas pela insistente rotação de "Smells Like Teen Spirit" e a consequente explosão dos Nirvana. Eram tempos de grandes expectativas, de algum orgulho até, que os nossos heróis estivessem a alterar os paradigmas do mainstream. Acreditava-se que, à boleia do "fenómeno", outras bandas até aí invendáveis lhe seguissem, mas rapidamente a indústria deu a volta ao prego, e desatou a vender gato por lebre, ou seja, apenas actualizações das mesmas azeiteirices megalómanas de setentas. Talvez tenhamos sido ingénuos, mas por momentos foi um sonho lindo, o da disfuncionalidade dos Butthole Surfers, da brutalidade dos Jesus Lizard, ou da crueza dos Girls Against Boys a invadir as tabelas de vendas.
Pegando nos últimos, um colectivo com sede em Nova Iorque, mas com raízes no contexto hardcore de Washington D.C., se saiu frustrada a expectativa do sucesso, convém referir o culto sólido que construíram ao longo de toda a década de 1990, inclusive como uma das bandas mais acarinhadas desse período junto de alguns sectores. Nada o faria prever, com um disco de estreia a meio gás, a acusar alguma indefinição numa encruzilhada entre o post-hardcore e o math-rock. O sucessor, este Venus Luxure No. 1 Baby, parte das mesmas premissas, mas é um passo evolutivo de gigante numa linguagem própria que haveria de fazer escola. Desaconselhável a pessoas dadas à sensibilidade, este é um disco que expõe as entranhas, o lado mais perverso e doentio da mente humana, numa postura de constante afronta. Não há nos onze temas um pingo de afecto, apenas carnalidade em estado bruto. Porém, e ao contrário de muitas outras bandas similares, há nos Girls Against Boys um groove macabro que os torna atractivos, conferindo aos seus temas uma fisicalidade que outros não têm. A razão para tal advém da particularidade de o quarteto incluir dois baixistas, o que o torna um rolo compressor rítmico. Para o aferir basta ouvir os instantes iniciais de "In Like Flynn", e abandonar o corpo ao ritmo do groove frenético antes de se ser triturado pela rispidez circular da guitarra. Num registo próximo, "Rockets Are Red", aumenta a rapidez do compasso promovendo a dança espasmódica. "Bullet Proof Cupid" é menos rítmico, mas nem por isso menos absorvente numa espiral contínua que desagua num mar de distorção. Em todos os temas a voz de Scott McCloud é de uma rispidez próxima do agressão, comparável à de um Richard Butler, dos Psychedelic Furs, sem qualquer sentido moral. É num tom ameaçador que o vocalista vai discorrendo fantasias, constantes invectivas ao sexo oposto, sem demonstrar qualquer tipo de emoção, apenas desejo carnal. Mesmo quando concedem uma trégua à trituração, como acontece em "Satin Down" ou "Bug House", ambos fruto da estranha obsessão dos Girl Against Boys pela cultura lounge de sessentas, a atmosfera que nos rodeia é igualmente malsã. Em ambos localizamos McCloud em digressões nocturnas por estabelecimentos mal afamados, num estado ébrio tão disponível para o engate como para a zaragata.
O mundo negro de horrores dos Girls Against Boys, que no fundo também é o nosso, rendeu ainda mais dois compêndios de idêntica excelência à de Venus Luxure No. 1 Baby, nomeadamente nos dois álbuns imediatamente seguintes: Cruise Yourself (1994) e House Of GvsB (1996). A partir daí registou-se um decréscimo qualitativo das edições, talvez o principal motivo para que a banda esteja em banho-maria desde há uma década. No entanto, o hiato tem merecido aparições esporádicas em festivais da especialidade, com concertos que são a prova de que aquele tríptico de discos ainda representa algo para uma geração que anda agora na viragem dos trintas para os quarentas.
É algo que já dura uma boa dúzia de anos, esta coisa da incapacidade de novos nomes se firmarem no firmamento musical e construírem carreiras sólidas. Curiosamente, este período coincide precisamente com o da democratização da internet e da facilidade de divulgação e acesso à música que daí adveio, bem como com o do decreto da morte indústria. Talvez falte o crivo que outrora pertenceu às editoras, e em consequência o que nos é oferecido são decalques de diferentes passados, onde rareiam traços de personalidade própria. Já nem falo do enjoo revivalista do post-punk ou daquelas coisas coloridas que recuperam alguns pesadelos de oitentas, felizmente confinadas a locais de que fujo a sete pés. A tendência mais recente é recuar na máquina do tempo, com cópias a papel químico de sons do tempo em que ainda não éramos nascidos. Não questiono a competência de bandas como os Black Keys, os Alabama Shakes, ou os Allah-Las, apenas duvido da necessidade da sua existência quando tenho ao dispor a música dos "originais", que além de originais escreviam melhores canções. Neste contexto, e para mostrar à garotada como se faz, tem sido necessário recuperar "velhas glórias", operação que resulta num saldo francamente positivo. Basta lembrar-mos as revitalizações de carreiras levadas a cabo por Rick Rubin, o regresso apoteótico do malogrado Solomon Burke e, ainda nos territórios da soul, a recuperação do esquecimento de nomes como Sharon Jones ou Lee Fields.
No sector da música negra, e no que a regressos de veteranos mais ou menos esquecidos, temos agora de somar a diva Mavis Staples, ela que iniciou carreira nas Staple Singers, grupo de gospel e tudo à volta dirigido pelo patriarca Roebuck Staples e partilhado com as irmãs. Depois da experiência de há três anos, já septuagenária, esta representante da alma negra de Chicago, reincide na aliança com Jeff Tweedy, líder dos Wilco, que então produziu o mui recomendável You Are Not Alone. Quanto ao novo One True Vine, não sei se derivado do melhor conhecimento de ambos, resulta pura e simplesmente assombroso, como poucos discos que tenham ouvido nestes últimos anos. Além de produzir, Tweedy toca também quase todos instrumentos, excepção para as percussões, a cargo do filho Spencer, e dos sopros. É também responsável pela composição de metade dos dez temas, sendo os restantes uma versão de um tema recente dos Low (também por ele produzido), uma regravação de um tema do tempo das Staple Singers, uma versão dos Funkadelic, outra de Washington Phillips, e um inédito escrito propositadamente pelo britânico Nick Lowe. A produção não se dispõe a grandes sumptuosidades, deixando a Voz de Mavis Staples assumir todo o protagonismo, num esplendor que parece ter-se refinado com os anos. Podemos dizer que a toada dominante é a da soul, com umas ligeiras pinceladas bluesy, e com a omnipresença das contaminações gospel, infiltradas de modo idêntico ao de Jason Pierce desta fase redentora dos Spiritualized. Como é costume em Mavis, excluindo a afirmação de orgulho negro mais abaixo, o que se canta são sobretudo manifestações de religiosidade, autênticas orações de fé. Porém, One True Vine é disco capaz de penetrar no coração de ateus militantes, agnósticos convictos , e crentes praticantes. A todos assegura a subida aos céus.
CAMPER VAN BEETHOVEN Take The Skinheads Bowling [Rough Trade, 1986]
Há canções assim, que pela intensidade da penetração no imaginário colectivo, são julgadas como sucessos comerciais retumbantes sem sequer estarem perto de o ter sido. Talvez não me ocorra melhor exemplo que o de "Take The Skinheads Bowling", que inicialmente nem foi programada pelos seus autores para single promocional, e quando foi lançada neste formato já tinha um distanciamento temporal relativamente ao álbum de origem suficiente para considerarmos a opção tardia. Entretanto, já as college radios americanas tinham adoptando este mesmo tema como prioritário na divulgação do álbum de estreia dos Camper Van Beethoven, causando tal impacto na juventude de então que as versões sucederam-se a bom ritmo ao longo dos anos seguintes.
Nascidos sob o sol da Califórnia, e ainda sob a égide dos estilhaços punk, estes Camper Van Beethoven ainda são do tempo em que o universo indie se envergonhava de ir beber às raízes. Não era o caso deste colectivo de filosofia do-it-yourself, que à dominância dos elementos folk juntava pitadas de ska, punk, world music, e a inevitável e apelativa pop. "Take The Skinheads Bowling", que acasala sem atritos a folk e a pop, destaca-se do alinhamento do álbum debute (Telephone Free Landslide Victory, de 1985) por ser irremediavelmente catchy, ficando para a posteridade como o tema mais emblemático destes californianos. A melodia é de uma simplicidade quase chocante, traçada pelo violino de Jonathan Segel, e o refrão em coro remete para ecos country & western. O estilo da voz de David Lowery, semi-cantado, semi-falado, é em tudo reminiscente da postura desinteressada com que Jonathan Richman nos contou histórias dos sub-mundos da América. Porém, não há em "Take The Skinheads Bowling" qualquer intenção de seriedade, já que a letra é delirante non-sense, embora se tente ler nas entrelinhas recado tanto aos sisudos visados no título como aos fundamentalistas hardcore da época.
O trunfo de não pretenderem levar-se demasiado a sério ("folk surrealista e absurdista", como os próprios proclamavam) poderá ter sido também o maior estigma dos Camper Van Beethoven, com o público a corresponder a essa pretensão. Porém, o que é certo é que, pelo menos junto da facção de oitentas que já tinha perdido a paciência para jovens a carregar o peso do mundo sobre os ombros, produziram temas de puro entretenimento em quantidade suficiente. "Take The Skinheads Bowling" é o melhor exemplar, claro.
É no mínimo estranho o caso dos norte-americanos Superchunk, que em casa são vistos como uma autêntica "instituição" indie, e na Europa nunca foram além da adoração de uns quantos ao longo de quase um quarto de século de história. Mais incompreensível se torna a indiferença do Velho Continente se referirmos o facto de o vocalista Mac McCaughan e a baixista Laura Ballance serem os fundadores da Merge Records, uma das editoras independentes mais bem sucedidas na actualidade, ou que o baterista Jon Wurster, além de comediante, tem sido convidado a colaborar com uma infinidade de bandas e músicos bem estabelecidos junto do público europeu. O que é certo é que, desde a sua formação em 1989 em Chapel Hill, que à data era uma espécie underground daquilo que Seattle se tornaria em breve, já lançaram uma dezena de álbuns, qualquer deles pejados daquela estirpe de canções que condensam o espírito e a energia juvenis. Talvez derivado às actividades extra-curriculares, o ritmo de edições abrandou na década anterior, com o silêncio de quase dez anos interrompido apenas pelo fulgurante Majesty Shredding (2010), que sossegou os fiéis quanto aos rumores de um fim.
Com o novo e altamente recomendável I Hate Music, os Superchunk confirmam que o regresso foi para ficarem por muito mais tempo. Para tal não precisam de acrescentar algo de novo, tal como acontece neste disco, que um "especialista" deverá considerar um dos mais coesos do reportório. No entanto, e não obstante ainda se opere naquela encruzilhada do reboliço da punk-pop com a melodia contagiante da power-pop, há nestes onze temas algo de reflexivo, por vezes ensombrado, tornando óbvio que a inevitabilidade da meia-idade toca a todos. Consta que as palavras, por vezes pesarosas, que saem do habitual timbre nasalado de McCaughan foram inspiradas pela morte de um amigo próximo da banda, o que faz com que I Hate Music tenha a pairar sobre si a sombra da mortalidade, mas não deixando, contudo, de ser uma celebração da vida enquanto ela dura. A título de exemplo remeto-vos para para o curto "Staying Home", obviamente sobre a falta de vontade para saídas nocturnas, que por acaso é um dos petardos mais noisy da carreira dos Superchunk. De resto, e com alguma atenção às letras, a facção music geek não vai ficar indiferente à abordagem de assuntos como as descobertas e partilhas musicais da juventude a servirem de ponto de partida para amizades eternas, como acontece no exemplar abaixo, ou das sensações e arrepios, misto de felicidade e nostalgia, sentidos no final de mais um festival rock, no momento em que procissão abandona o recinto ("Trees Of Barcelona"). Posto isto, penso que nem é preciso dizer que, vindo de gente como os Superchunk, que entregaram a sua vida à música ("What Can We Do", dizem-nos no tema de encerramento com chave de ouro), um título como I Hate Music só pode ser sarcástico.