NIRVANA
In Utero
[DGC, 1993]
Como se reage ao sucesso desmesurado, inesperado e, a julgar pelas declarações avulsas dos intervenientes, indesejado? Bem, no caso dos Nirvana, que num ápice se viram catapultados dos confins do submundo indie americano para o estrelato planetário, a reacção foi recorrer, no álbum pós-boom, aos serviços daquele que na altura personificava o espírito independente do underground: Steve Albini. Além disso, outros motivos poderão ter estado na base da escolha deste verdadeiro enfant terrible para o corporativismo para as funções de produtor (ou "gravador", como prefere ser tratado) dos Nirvana, tais como o seu passado nos influentes Big Black, ou o idêntico papel que havia desempenhado nos discos Surfer Rosa (Pixies) e Rid Of Me (PJ Harvey), ambos trabalhos louvados por Kurt Cobain. Por outro lado, era pública a insatisfação do frontman do trio de Seattle com o trabalho lustroso de Butch Vig em Nevermind (1991). Neste particular, penso que o desgaste do tempo acabaria por lhe dar razão. Reza a lenda que, com a contratação de Albini, soaram as sirenes de alarme nos escritório da Geffen, com os executivos a temerem um disco "difícil", um autêntico suicídio comercial de dedo médio em riste.
Curiosamente, e apesar da crueza e da secura características das gravações do Midas de Chicago serem evidentes, In Utero acabaria por ser veículo para o conjunto de canções mais bem acabadas do escasso mas rico espólio dos Nirvana. Diria mesmo que, se necessárias fossem ainda provas da excepcional qualidade de Cobain como escritor de canções, quase todos estes doze temas são o atestado definitivo de genialidade. Não obstante a linearidade das faixas, In Utero é um trabalho de uma violência emocional em estado bruto, um autêntico murro no estômago que expõe ao mundo do âmago do seu principal autor, notoriamente transtornado pelas convulsões trazidas da excessiva exposição mediática. Esse grito de revolta ganha eco na música nos temas mais viscerais, feitos de tensão e silvos de distorção, como "Scentless Apprentice" e "Milk It". O primeiro, inspirado no romance O Perfume de Patrick Süskind, é particularmente demolidor, um dos muitos motivos que nos faz desejar que Dave Grohl jamais tivesse saído de trás de uma bateria. As raízes de punk não foram postas de lado, e são afloradas em "Very Ape" e "Radio Friendly Unit Shifter", temas de estrutura mais simples mas de maior reboliço. No extremo oposto desta rudeza estão "Dumb" e "All Apologies", dupla de canções representante de uma quase tradição de os Nirvana encerrarem cada lado dos seus álbuns em toada mais calma e acústica. Se visto como um epitáfio antecipado dos tristes acontecimentos de pouco mais de meio ano mais tarde, o último é uma confissão verdadeiramente tocante na sinceridade, sem qualquer espécie de lamúrias ou de vitimização
Se o atrás descrito nada acrescenta ao que já fora desenvolvido no par de discos anteriores dos Nirvana, temos de esclarecer que In Utero é aquele em Kurt Cobain não se inibe de tratar questões pessoais, não se limitando a abordar experiências alheias como era hábito. Em "Serve The Servants", que abre o disco, fica explícita a rejeição de ser porta-voz de uma geração, tanto por falta de vontade como por inaptidão, enquanto "Heart-Shaped Box", eventualmente o mais sublime pedaço de música saído da pena de Cobain, é um cruel tratado de intimidade exposta. Pese embora as múltiplas interpretações que permita, é mais ou menos ponte assente que aborde a ambiguidade de sentimentos da recente paternidade, bem como a tumultuosa relação com Courtney Love, não deixando claro se por responsabilidades próprias, se por intervenção das coscuvilhices dos media. A empatia pelos deserdados da sorte na vida real é também recorrente, e em In Utero materializa-se no visceral e controverso "Rape Me" e no devoto "Frances Farmer Will Have Her Revenge On Seattle", este obviamente inspirado pela actriz alvo de uma lobotomia por parte dos discutíveis critérios médicos dos tempos do pós-guerra. No primeiro, há lugar para a ironia por via da auto-citação, com a abertura a recuperar os acordes iniciais do massivo "Smells Like Teen Spirit", enquanto o último representa a dinâmica quiet-loud-quiet, que sai aprimorada em In Utero. Esta fórmula, talvez surripiada aos Pixies, que se tornou característica nos Nirvana sai também reforçada por "Pennyroyal Tea" e o já citado "Heart-Shaped Box".
Apesar do contentamento dos Nirvana face ao resultado final global, a relação com Steve Albini não deixou de ter os seus atritos. As divergências subiram de tom quando o produtor acusou a banda de cedências às interferências da editora, o que mereceu do trio alegações de opções próprias. Tudo isto pela decisão de contratar Scott Litt, habitual produtor dos R.E.M., para novas misturas de um par de temas ("Heart-Shaped Box" e "All Apologies"), por sinal aqueles que acabariam por ser escolhidos para singles promocionais. Dentro de dias, por ocasião do lançamento da edição comemorativa do 20.º aniversário de In Utero, vamos finalmente ficar a conhecer as misturas inicialmente propostas por Albini, que julgávamos para sempre vedadas ao público. Serão assim tão diferentes, ao ponto de termos de reescrever uma versão alternativa da História?
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