"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel
Sobre os escoceses Veronica Falls, alguém disse um dia que soavam tão britânicos que pareciam americanos. A provocação, carregada de ironia, ficou a dever-se à constatação da existência de uma enxurrada de bandas dos states a recuperar hoje em dia as sonoridades de finais de oitentas, da jangle e da twee-pop que emergiram a partir da C86 e que tiveram origem no Reino Unido.
O mesmo se pode aplicar aos londrinos The History of Apple Pie, um quinteto já com cerca de dois anos de rodagem. Neste período, lançaram um promissor trio de singles preparatórios para o primeiro álbum, a sair perto do final do mês corrente. O disco, intitulado Out Of View, integrará todos os três temas já conhecidos. A julgar por estas amostras, é de esperar um trabalho que, a partir das referências supra citadas e do primeiro álbum dos My Bloody Valentine, alinha por aquela noise-pop carregada de sacarina que fez história em inícios de noventas. Se estão já à espera de uma derivação dos xoninhas The Pains of Being Pure at Heart, esclareço-vos que os History of Apple Pie parecem ter o sangue na guelra que falta àqueles, em parte derivado da ingenuidade falsa da vocalista Stephanie Min, uma pequena com ascendência asiática com voz doce e insinuante. Sejam optimistas e pensem antes num transplante dos Velocity Girl de boa memória para a actualidade, o que parecem mais elogioso e ajustado.
Na viragem dos oitentas para os noventas, antes de os Nirvana terem preparado o mainstream para a assimilação do american underground, os Big Dipper foram uma das vítimas da falta de preparação das multinacionais para lidar com tais sonoridades. Porém, antes do único e falhado disco por uma major, que acabou por ditar o fim da banda, lançaram, com selo da Homestead Records, um par de álbuns que os afirmou como um dos nomes de referência do espectro indie ianque daquela época. Nem sempre com igual reconhecimento deste lado do Atlântico, diferenciavam-se da maior abrasividade de muitos dos contemporâneos com uma abordagem mais melódica, com referências jangle-pop, power-pop, e algumas pinceladas de psicadelia.
Em 2008, após a edição de uma antologia, um quarteto composto pela quase totalidade da formação original da banda, das primeiras a emergir da incontornável "cena" de Boston, regressou aos palcos para os obrigatórios concertos em nome da promoção e da nostalgia. Pelos vistos, a reunião inicialmente pensada como temporária reacendeu o entusiasmo que a má experiência de quase duas décadas antes esmoreceu. De tal forma que, já na recta final do ano passado, os Big Dipper lançaram o álbum Big Dipper Crashes On The Platinum Planet, uma vez mais pejado de referências à astronomia, uma tradição da banda que vai muito além do próprio nome. Lançado com alguma discrição nestes tempos em que a boa pop de guitarras parece votada ao desprezo pelos fazedores de modas e tendências, o novo disco está ao nível dos pergaminhos dos seus autores. Com uma dúzia de temas, recupera a marca identitária de uma power-pop, vagamente raivosa, entoada a duas vozes, na circunstância as de Bill Goffrier e de Gary Wailek. A dupla também se entende às mil maravilhas nos diálogos de guitarras, às vezes ríspidas, mas sempre com uma dose energética que já pouco se usa. Um bom exemplo é "Guitar Named Desire: The Animated Sequel", o magnífico tema de encerramento que é uma sequela/remake do tema que fechava Heavens (1987), o histórico álbum de estreia. A capa de ...Crashes On The Platinum Planet ficou a cargo de um tal Robert Pollard, um entusiasta que tem os Big Dipper como um das bandas predilectas. O mesmo que vê o favor retribuído com um tema-homenagem, por acaso - ou talvez não - feito da mesma reverência em regime lo-fi às memórias da British Invasion que fizeram a fama dos Guided by Voices.
Hoje olhado como um dos representantes da chamada "burguesia pop", não só pela produção musical acomodada, como pelos laços matrimoniais, Elvis Costello foi, em tempos, um dos compositores e músicos mais inconformados dos muitos surgidos no Reino Unido após a explosão punk. Símbolo maior daquilo a que convencionou chamar-se new-wave, este londrino nascido Declan MacManus, cedo se destacou na "cena" pub rock com uma escrita acutilante, demonstrativa de um observador da sociedade sem papas na língua.
Apresentou-se ao mundo com "Less Than Zero", tema que integraria o seu primeiro álbum, e logo aí fez questão de assumir uma postura de desbocado, capaz de causar algum incómodo em certos sectores da sociedade britânica. A inspiração para este tema partiu de uma entrevista concedida à BBC por Oswald Mosley, na qual este antigo líder da extrema direita britânica durante a década de 1930, que defendia ideias semelhantes às de Adolf Hitler na mesma época, procurava demarcar-se de tão tenebroso passado. Sem uma referência propriamente directa ao visado, mas com uma letra deveras inteligente, Costello tem um efeito contundente naquele sector político, ainda matéria para muitos outros temas do início de carreira. "Less Than Zero" marca o início de uma longa e proveitosa colaboração do músico e do produtor (e também músico) Nick Lowe. É o começo de uma linguagem muito própria, com a evidência dos tempos e dos ritmos inspirados pelo reggae, mas com uma sonoridade que também evoca o rock'n'roll depois de apropriado pelos brancos. O impacto da new-wave britânica, e em particular de Elvis Costello, na juventude norte-americana fica bem patente na escolha de Less Than Zero para título do primeiro romance de Brett Easton Ellis, também ele um observador atento e crítico da sociedade circundante, no caso da face negra por detrás do verniz da juventude da classe alta.
Não é habitual ser um mãos largas a dar prendas com esta frequência. Mas hoje é um dia especial, e a meia dúzia que vai aterrando por aqui de quando em quando merece. É que hoje cumprem-se seis anos exactos desde que embarquei nesta coisa do April Skies. O tempo tem escasseado, e a frequência de "postadelas" tem-se ressentido, mas permanece intacta a vontade de continuar. Por agora, e rematando a retrospectiva de 2012, deixo-vos uma pequena compilação com vinte dos temas que mais gozo me deram ouvir ao longo do ano. Para não estar a chover no molhado, deixei de fora alguns nomes mais "badalados". Espero que seja do vosso agrado e que continuem desse lado. Obrigado!
De uma forma geral, o ano que agora termina não confirmou a tendência de recuperação do antecessor, um oásis qualitativo na produção musical da última meia dúzia de anos. Não foi, contudo, um ano de má colheita. Diria até que foi um ano bastante equilibrado, o que dificultou o escalonamento do top pessoal, ao qual apenas faltaram em quantidade aqueles discos que ouviremos dentro de uma década com o mesmo entusiasmo. Foi em 2012 que Bill Fay interrompeu um silêncio com quatro década e arrancou o título de "disco para gente crescida" do ano. Porém, a ter de eleger uma figura do ano, optaria sem hesitações por Ty Segall, o puto-maravilha que se destacou, não só pela quantidade, como pela qualidade da obra editada. Tal como ele, outros jovens músicos se apresentaram em bom plano em 2012, um ano em que os neófitos parecem ter ombreado com "veteranos" e regressados à linha de combate. Foi também em 2012 que fortaleci o renovado interesse pelas sonoridades electrónicas, algo que já se manifestava tenuemente no último par de anos. Neste espectro, a tabela dos melhores álbuns está bem representada. Quanto a concertos, este talvez tenha sido o ano de maior fartura, nestas mais de duas décadas de vida a rock'n'rollar, com alguns deles a entrarem para aquele grupo restrito dos concertos de uma vida. Com os votos de que 2013 seja um ano ainda mais positivo, a todos os níveis e para todos nós, passo ao que realmente interessa:
30 ÁLBUNS
SPIRITUALIZED - Sweet Heart, Sweet Light
JULIA HOLTER - Ekstasis
LOWER DENS - Nootropics
METZ - METZ
SWANS - The Seer
TEETH - The Strain
CLOUD NOTHINGS - Attack On Memory
BEACH HOUSE - Bloom
LAUREL HALO - Quarantine
BILL FAY - Life Is People
GODSPEED YOU! BLACK EMPEROR - 'Alleluijah! Don't Bend! Ascend!
TY SEGALL BAND - Slaughterhouse
DEAN BLUNT & INGA COPELAND - Black Is Beautiful
THE PRIMITIVES - Echoes & Rhymes
ALLO DARLLIN' - Europe
THE FRESH & ONLYS - Long Slow Dance
DEATH GRIPS - The Money Store
CLINIC - Free Reign
TAME IMPALA - Loneirism
TY SEGALL - Twins
SWEARIN' - Swearin'
ACTRESS - R.I.P.
SHARON VAN ETTEN - Tramp
JAPANDROIDS - Celebration Rock
THE PHEROMOANS - Does This Guy Stack Up?
THEE OH SEES - Putrifiers II
BMX BANDITS - BMX Bandits In Space
BAILTER SPACE - Strobosphere
DJANGO DJANGO - Django Django
ETERNAL SUMMERS - The Dawn Of Eternal Summers
10 SINGLES / EPs
BURIAL - Kindred
TASHAKI MIYAKI - Best Friend
SAVAGES - Flying To Berlin/Husbands
DEAN BLUNT - The Narcissist II
SEBADOH - Secret
BLACK TAMBOURINE - OneTwoThreeFour
SAVAGES - I Am Here
DUM DUM GIRLS - End Of Daze
TIMES NEW VIKING - Over & Over
FRIGHTENED RABBIT - State Hospital
10 REEDDIÇÕES / COMPILAÇÕES
MY BLOODY VALENTINE - EPs 1988-1991
A.R. KANE - The Complete Singles Collection
CAN - The Lost Tapes
CODEINE - When I See The Sun
DONNIE & JOE EMERSON - Dreamin' Wild
UNREST - Perfect Teeth
TALK TALK - Spirit Of Eden
THE AZUSA PLANE - Where The Sands Turn To Gold
R.E.M. - Document
JOSEF K - Sorry For Laughing
15 CONCERTOS
BIG STAR'S THIRD @ Primavera Sound - Barcelona, 01 Jun.
GODSPEED YOU! BLACK EMPEROR @ Amplifest - Porto, 28 Out.
JULIA HOLTER @ St. George's Church - Lisboa, 27 Jun.
THE AFGHAN WHIGS @ Primavera Sound - Porto, 09 Jun.
THE POP GROUP @ Primavera Sound - Barcelona, 02 Jun.
MAZZY STAR @ Primavera Sound - Barcelona, 31 Mai.
THE MAGNETIC FIELDS @ Teatro Maria Matos, 02 Mai.
MALE BONDING @ MusicBox - Lisboa, 21 Jan.
THE AFGHAN WHIGS @ Primavera Sound - Barcelona, 31 Mai.
Sob o risco de me estar a tornar repetitivo, gostava uma vez mais de assinalar a tendência, semi-discreta ainda, de as novas bandas recuperarem os sons que fizeram a "explosão alternativa" de inícios de noventas. É uma constatação da qual já aqui dei conta (quase) sempre que falei de gente como os Japandroids, os Cymbals Eat Guitars, os Male Bonding, ou os Yuck. Mais recentemente, foram os METZ, com o seu explosivo álbum debute, a juntar-se ao "contingente" que nos faz recuar a uma das mais brilhantes (a última?) eras pop/rock. Enquanto a coisa não der para o aparecimento em massa de sub-produtos derivados dos derivados, como tem acontecido com quase todos os revivalismos, é um "fenómeno" que me apraz registar. Até porque alimenta a esperança de que o bom-gosto das novas gerações varra da memória colectiva, de uma vez por todas, alguns dos piores tiques da década de oitentas que outros têm recuperado ad nauseum.
Embora ainda menos visíveis que os exemplos citados, hoje gostaria de acrescentar ao rol os Swearin', um quarteto com origens em Brooklyn mas que escolheu Filadélfia como poiso. Ainda com poucos meses de vida, em finais do ano passado, lançaram um promissor EP que nos deixou de sobreaviso. As melhores expectativas foram confirmadas com um álbum, homónimo, perto do final do Verão. Com uma dúzia de temas curtos, o disco embarca naquela inquietude juvenil que movia os Superchunk de há uma boa vintena de anos, com muito reboliço mas um apurado sentido melódico. Ou seja, fazendo uso do sempre eficaz jogo de vozes feminino/masculino, são temas implicitamente punk na atitude, mas inequivocamente pop no âmago. Quando é Kyle Gilbride o chamado à linha da frente, o tom nasalado deste remete-nos para um Doug Martsch em dia sim, sem a habitual gravidade dramática. Já Allison Crutchfield, que em tempos militou nos engraçaditos e extintos P.S. Eliot, lembra-nos a facção feminina e bostoniana da 4AD (Belly, The Breeders), ou ainda as vozes angelicais que se erguiam no ruído delicodoce da música dos Velocity Girl ou dos Helium. Na melhor tradição da pureza pop, as letras expressam as inanidades próprias de quem está nos vinte e poucos, aquele limbo entre o fim da adolescência e a chegada da idade adulta, quase com o mesmo encanto de uns Unrest dos tempos de Perfect Teeth (1993). Deste infindável citar de referências, facilmente se depreende que Swearin' poucas ou nenhumas novidades traz ao mundo pop. Apenas e só um pequeno contributo de pouco menos de meia hora de canções daquelas que ainda privilegiam o conteúdo em detrimento da "embalagem", espécie rara nos tempos que correm.
Em época de festividades, chega-nos a triste notícia da morte (ontem) de Fontella Bass, na sequência de complicações decorrentes de um ataque cardíaco há algumas semanas. Tinha 72 anos, os últimos dos quais já com uma saúde debilitada.
Não obstante a sua escassa obra discográfica, Fontella protagonizou um dos maiores sucessos da Chess Records, quando esta editora decidiu variar o seu catálogo assente no rock'n'roll e nos blues e apostar nas emergentes vozes soul femininas. Fala-vos de "Rescue Me", tema por si co-escrito (faceta rara nas cantoras de então) e gravado em 1965, e muitas vezes, erroneamente, confundido com um um hit da "diva" Aretha Franklin. Meses antes, já experimentara o sabor do sucesso com "Don't Mess Up A Good Thing", dueto com Bobby McClure. Até final de sessentas, gravaria outros temas com sucesso moderado, mas sem nunca atingir os níveis de reconhecimento daquele par de singles iniciais. Entre eles, os mais bem recebidos foram "I Can't Rest" e "Recovery", ambos de 1966. Ao desquite com a Chess, derivado de discussões autorais e divisão de royalties, seguiu-se um período de obscuridade que se prolongaria até esta data. Data de inícios de setentas um par discos, infelizmente negligenciados, com o Art Ensemble of Chicago, que assinalam a entrada de Fontella no mundo do jazz. Foi neste combo que conheceu Lester Bowie, com quem viria a casar e a gravar no início da década de 1980. As últimas gravações que se conhecem datam de 2007, com a participação vocal num par de temas da Cinematic Orchestra, repetição de idêntica colaboração com este colectivo britânico cinco anos antes.
Ben Frost - Music for Six Guitars @ Teatro Maria Matos, 20/12/2012
Talvez porque fosse a véspera do dia marcado para o fim dos tempos, o Maria Matos presenciou, há uma semana exacta, o regresso de Ben Frost àquele palco. Escolha adequada para a data, se tivermos em conta que este músico australiano desterrado no rigor da Islândia tem povoado a sua obra discográfica com sugestões do medo e das trevas. Porém, não trazia na bagagem um reportório baseado nessa obra gravada, nem na sua implícita tenebrosidade, mas sim o espectáculo Music for Six Guitars, por si composto e concebido para formações de músicos flutuantes.
Para a paragem em território nacional, e um pouco à semelhança do que acontece por onde passa com este conceito, Ben Frost fez-se valer de músicos quase na sua totalidade recrutados na "cena" local. Com ele estiveram seis guitarristas habituados a operar nas franjas do rock, e ainda um sexteto de sopros (três trompas e outros tantos trombones), este composto por gente da Orquestra do Conservatório do Porto. No meio da assistência, de frente para o palco, Ben Frost era o responsável pela manipulação electrónica e pela direcção da peça musical a rondar a hora de duração. Dispostos ao acaso, sem pautas, os guitarristas deambulam livremente, deixando escapar muitos maneirismos da postura rock. Neste particular, faltou o rigor "erudito" a que já assisti, por exemplo, num espectáculo similar sob a direcção de Glenn Branca, no qual os músicos, estáticos, são secundarizados pela direcção do maestro. Na sua estrutura, Music for Six Guitars segue uma sequência óbvia, sem sobressaltos à lógica: entrada sob o domínio das guitarras, primeiro "desamplificadas", depois em uníssono ultra ruidoso; juntam-se-lhes os sopros que, posteriormente, são centro das atenções; final novamente ao som das guitarras que esmorecem num final, uma vez mais, desprovido de amplificação. Nesta simetria, o ponto alto é aquele em que o apogeu sónico toma conta dos sentidos, logo no primeiro terço do espectáculo. Talvez este efeito tivesse sido superado se Ben Frost tivesse optado por melhor conjugação da ruideira das guitarras com a dissonância dos sopros mas, na equação final, fica a sensação de que os metais tenham sido subaproveitados. Neste concerto de sabor agridoce, portanto com altos e baixos, uma palavra de apreço pela meia dúzia de guitarristas, (quase) incansáveis na fisicamente desgastante tarefa de repetir os mesmos escassos acordes ao longo de toda a sua prestação.
Talvez para descomprimir da vida de estrada e de estúdio das suas bandas "principais", respectivamente os Woods e as Vivian Girls, Kevin Morby e Cassie Ramone deram vida a um projecto ao qual deram o nome The Babies. A coisa materializou-se com um disco homónimo logo no começo do ano passado, um pequeno artefacto lo-fi com arremedos garage, algures entre a sensibilidade folk dele e a linguagem fuzz-pop dela. Entretanto, a brincadeira parece ter-se tornado coisa séria, e The Babies já é hoje nome de banda propriamente dita, com quatro elementos permanentes.
Foi já nesta condição que lançaram o recente Our House On The Hill, disco registado em condições técnicas melhoradas e mergulho profundo na country com sensibilidade indie. Não se querendo levar demasiado a sério, mas com umas quantas canções descomprometidas da melhor safra, resulta como um diário imaginário do abandono do conforto da grande cidade rumo à vastidão da América profunda. Pelo caminho, Kevin e Cassie, umas vezes vestindo a pele de Paul e Linda McCartney, outras a de Clyde e Bonnie, descobrem a grandeza e a beleza da América, mas também o seu lado críptico. Essa descoberta traduz-se em canções, umas vezes celebrando a liberdade da vida on the road, outras vezes como pequenas histórias de transgressão à lei, muitas das vezes com duetos prenhes de perversão e luxúria. Na sua dúzia de temas, curtos e directos, Our House On The Hill é daqueles discos que nos fazem crer que o maior trunfo da música pop, e talvez o seu maior encanto, ainda reside na mais despretensiosa simplicidade.
Se bem se lembram, nos primórdios, os Low eram uma espécie de paradigma daquilo a que se convencionou chamar slowcore, com uma música de uma lentidão austera, ao mesmo tempo capaz de exprimir os sentimentos mais recônditos. Subtilmente, foram evoluindo nessa matriz, culminando em The Great Destroyer, o álbum que ficou conhecido como o seu "disco rock". Não obstante uma maior carga enérgica, nesse disco ainda podemos encontrar temas daquela progressão em lume brando que lhes deu fama. É o caso de "Pissing", que se inicia naquela lentidão hipnótica, com Alan Sparhawk e Mimi Parker em dueto numa letra desoladora, para rebentar num mar de distorção em alto volume.
Para o álbum Evangelista, que acabaria por dar nome à banda que hoje encabeça, Carla Bozulich contou com a participação de um naipe de músicos ligados à pandilha Godspeed You! Black Emperor e derivados. Se a isso somarmos o passado dela com os Geraldine Fibbers, uma das bandas mais viscerais saídas da explosão "alternativa" da América de noventas, concluímos estar na presença de uma alma atormentada, habituada à violência emocional e à terra queimada. Por tudo isso, naquele disco, acaba por encaixar na perfeição uma apropriação de "Pissing", com o devido tratamento avant-folk e a voz grave e dramática de Bozulich. O resultado final é bastante fiel ao original, talvez mais por respeito do que por falta de ideias. À parte a voz, as grandes diferenças residem nos ruídos ocasionais do intro, e na explosão da parte final, aqui transformada numa cacofonia apoteótica.
Se nos cingirmos unicamente ao ano corrente, é inegável que a figura de proa da tendência psych-garage que tem eclodido da costa oeste norte-americana seja o inesgotável Ty Segall. No entanto, o puto-maravilha ainda tem muito caminho a palmilhar para atingir o estatuto de John Dwyer, já com década e meia ao serviço do métier, tanto num número infindável de bandas, como sempre disponível para dar uma mãozinha aos amigos. Desde então praticamente omnipresente no "movimento", tem nos Thee Oh Sees a sua ocupação presente. De todos os projectos que já abraçou, talvez este seja o mais visível e, como todos os outros, é extremamente prolífico em matéria de edições discográficas.
Editado há cerca de três meses, Putrifiers II é já o décimo álbum de uma discografia que dá ameaça avolumar-se a qualquer instante. Por sinal, para uma banda com fama de cultivar a excelência em palco, desprezando a qualidade técnica em disco, é naquele em que o quarteto franciscano melhor explora as potencialidade de um estúdio. Consequentemente, o produto final é o seu disco mais límpido até à data. Espécie de súmula do caminho percorrido, Putrifiers II vem pejado de guitarras envoltas em fuzz, trips com sopros e órgãos em desalinho, canções convidativas à deriva mental, alguma sujidade e muita perversão, inevitáveis visitas à cave obscurecida dos Velvet Underground, e até incursões aos territórios do kraut (ver/ouvir abaixo). As vozes, alternando entre o grave e o falsetto, ficam quase em exclusivo a cargo de Dwyer, deixando, desta feita, Brigid Dawson praticamente remetida aos coros que abrilhantam o conjunto de canções mais dignas desse nome no reportório dos Thee Oh Sees.
AZTEC CAMERA High Land, Hard Rain [Rough Trade, 1983]
Quando Alan Horne criou a Postcard Records, com o ambicioso, para não dizer utópico, objectivo de fazer pela pop escocesa o que a Motown tinha feito pela música negra norte-americana de sessentas, escolheu o ajustado lema "The Sound of Young Scotland". Se os Orange Juice ou os Josef K se enquadravam na eloquência de tal frase pela frescura da sua música e a idade dos seus membros, para os Aztec Camera não poderia haver melhor descrição. Neste colectivo dos subúrbios de Glasgow pontificava Roddy Frame, um talento precoce que ainda na adolescência já editava sob aquela designação.
Fundados como uma banda convencional, os Aztec Camera cedo se tornariam um alter-ego de Frame, à volta do qual gravitavam diversos músicos, variáveis de disco para disco. Pouco antes do primeiro álbum, o vocalista, guitarrista e compositor viu-se abandonado pelos colegas de banda, colhendo sozinho os louros de High Land, Hard Rain, uma das mais auspiciosas estreias daquela época. Fez-se jus ao nascimento de um pequeno génio, tanto na guitarra acústica, como na escrita de canções, nitidamente influenciada pelo Dylan de Blood On The Tracks. Editado quando Frame tinha ainda apenas dezanove anos, High Land, Hard Rain inspira algum do seu cinzentismo, como o próprio título indica, nas características morfológicas e climatéricas da Escócia. Este exacerbado romantismo ligeiramente sombrio não interfere com a luminosidade pop própria da composição de um músico tão jovem, sempre presente nas dez faixas, mesmo quando estas versam temáticas de maior gravidade.
O disco abre em grande estilo com "Oblivious", tema escrito por Roddy Frame ainda adolescente e sinal inequívoco das aspirações deste à imortalidade pop. Provavelmente o tema mais cintilante de toda uma carreira, na guitarra absorve improváveis ecos de flamenco, de resto espalhados por cada recanto de High Land.... Esses ecos fazem-se ouvir com igual intensidade em "The Boy Wonders", canção sobre a fugacidade dos amores juvenis, mas de uma maturidade impressionante ao nível da composição, quer em termos melódicos, quer em termos de harmonia. "Walk Out To Winter" talvez seja responsável por toda a ternura agridoce que celebrizou os Prefab Sprout, inclusive com um refrão naquele tom bigger the life que fez escola. Neste, e também em "Pillar To Post" e no desolado "Release", são também notórias a inflexões jazzísticas de Roddy Frame, mormente da tendência mais relaxada com pitadas de bossanova. Sendo High Land... um daqueles raros álbuns de uma homogeneidade alarmante, sem pontos fracos, talvez seja injusto destacar qualquer dos seus temas como superior aos demais. A ter de fazê-lo, opto sem hesitações por "We Could Send Letters", recuperação de um tema dos primeiros dias dos Aztec Camera, que é, nem mais nem menos, uma das melhores canções sobre separação pela distância alguma vez escritas. Nesta regravação foram suprimidas quaisquer imperfeições da versão original. Na sumptuosidade dos arranjos, na urgência do refrão, e na pureza imaculada da voz, tem outra força a letra que, com nostalgia, nos remete para o Setembro das despedidas da nossa juventude.
Ao longo de quase mais década e meia, Roddy Frame escondeu-se ainda por detrás da "marca" Aztec Camera. Com uma discografia que não envergonha, contudo, jamais logrou alcançar o nível de excelência deste álbum debute. E digamos que não era fácil igualar a obra mais determinante para o desenvolvimento de uma facção letrada e sofisticada na pop britânica de oitentas. The Smiths, The Style Council, ou os citados Prefab Sprout, são apenas alguns - os mais sonantes - dos que escutaram High Land, Hard Rain atentamente e insistentemente, colhendo daí ensinamentos para as suas fulgurantes carreiras.
Como se já não nos bastasse os dias serem curtos, também têm andado frios e muitas vezes cinzentos. Tempo convidativo à permanência em casa, portanto. Nestas alturas, convém que a música seja a condizer, também ela tristonha. O April Skies encarrega-se de vos ajudar na escolha da banda sonora para este exílio no domicílio, com uma compilação centrada naquilo a que costuma chamar-se sadcore ou slowcore.
Ao todo são dezasseis faixas à razão de uma por banda, escolhas baseadas unicamente no gosto pessoal. Portanto, este não pretende ser o best of do "movimento" que, em particular de inícios a meados de noventas e sobretudo nos Estados Unidos, fez alguma da música mais lenta e dorida do espectro pop/rock. São contemplados tanto os pioneiros da coisa e sua descendência, como os seus maiores símbolos na era do apogeu. Do alinhamento ressalta que o sad/slowcore era, em si, um movimento abstracto, sem um tronco comum aos diversos figurantes. Assim, tanto temas de inspiração folk, como outras com derivações próximas dos post-rock. Há até um caso com referências jazzísticas, e muitos outros de mero indie-rock desacelerado por ex-punks aborrecidos com as rotinas da idade adulta. Não se confinando ao período referido, ainda hoje o sad/slowcore dá cartas, tanto através de alguns sobreviventes, como de novos rebentos, ou até por intermédio de bandas simbólicas entretanto reactivadas.
[Link nos comentários]
01. GALAXIE 500 - "Sorry" (1990)
02. ACETONE - "If You Only Knew" (1996)
03. IDAHO - "If You Dare" (1996)
04. BEDHEAD - "Bedside Table" (1994)
05. COME - "Sad Eyes" (1992)
06. THE FOR CARNATION - "Snoother" (2000)
07. AMERICAN MUSIC CLUB - "Sick Of Food" (1991)
08. LUNA - "Lost In Space" (1995)
09. CODEINE - "Second Chance" (1990)
10. LOW - "Cut" (1994)
11. RED HOUSE PAINTERS - "Bubble" (1993)
12. SPAIN - "Untitled #1" (1995)
13. IDA - "Post Prom Disorder" (1994)
14. DAMON & NAOMI - "Little Red Record Co." (1992)
Morreu ontem na Califórnia, onde se tinha estabelecido há muito, o músico e compositor indiano Ravi Shankar, provavelmente o mais notabilizado executante da sitar, instrumento tradicional do seu país natal.
O contacto com o grande público terá ocorrido por via dos Beatles, e em particular através de George Harrison e do seu interesse pela cultura e as ragas indianas. Shankar chegou a ser professor deste, acabando, por via indirecta, por ter um forte contributo na parte mais importante da discografia dos fab four. Antes, porém, já era um músico rodado no ocidente, um verdadeiro embaixador da música e culturas indianas e, por conseguinte, das chamadas "músicas do mundo" décadas antes dos fusionismos para consumo burguês. Dono de uma técnica apurada, apreendida com os grandes da sitar, Shankar era comparado, mesmo fora do seu meio, aos mais reconhecidos guitarristas rock. Nas últimas quatro décadas, imiscui-se no mundo da música erudita, em concertos e discos de colaboração que ajudaram, uma vez mais, a propagar a música indiana fora do contexto da world music.
Por norma, sobretudo da Suécia, mas também dos restantes países escandinavos, estamos habituados a receber produtos musicais que equivalem a enlatados atraentes do que já foi feito e refeito noutras paragens. Mas há excepções, para não dizer autênticas cartas fora do baralho, verdadeiros ovnis musicais. Talvez porque não se sintam obrigados respeitar uma herança de décadas de pop/rock que não têm, muitos dos músicos escandinavos não se sentem espartilhados pelos conceitos como os seus congéneres do eixo anglo-saxónico, ficando assim livres para transgredir regras e derrubar barreiras estilísticas.
Nesta categoria, temos forçosamente de incluir os Goat, colectivo de uns oito elementos idealizado segundo as visões musicais de Christian Johansson. A causar furor nos meios menos dados ao conservadorismo têm o álbum World Music, verdadeira esquizofrenia de estilos que, a pretexto da psicadelia, integra elementos de kraut, metal, drone, folk escandinava, prog, e infecciosos ritmos afrobeat. Alguns referem-se-lhes como um cruzamento entre Faust e Funkadelic, mas esta e qualquer descrição pecará sempre por defeito, tal a singularidade da proposta dos Goat. Porque vêm de uma pequena localidade no norte da Suécia associada a lendas de feitiçaria, ligam-nos a cultos voodoo e outras formas de magia negra. O facto de se apresentarem mascarados, e os ritmos tribais oriundos de África, também têm alimentado essa aura de ocultismo que tem ajudado na divulgação do projecto. Independentemente destes fait divers, é imperioso que o mundo conheça e se deixe embrenhar no maravilhoso mundo de World Music, um mundo de mistério que congrega muitas chamadas "músicas do mundo" sob a égide pop/rock, sem que soe forçado ou ausente de autenticidade. Salvas as devidas diferenças, este é o objecto musical estranho que faltava em 2012, um pouco como aconteceu com disco dos, entretanto alegadamente extintos, Wu Lyf no acto transacto.
Lumerians + Black Bombaim @ Centro Cultural do Cartaxo, 07/12/2012
Com uma aliciante programação sobretudo para os adeptos da psicadelia, o Centro Cultural do Cartaxo é a prova de que, com vontade e persistência, é possível agitar as águas mesmo fora dos grandes centros urbanos. Os esforços de quem organiza e promove têm sido recompensados, com a crescente adesão de público a cada novo evento.
Na passada sexta-feira, a boa massa humana presente pôde assistir a uma prestação competente, mas não propriamente deslumbrante, dos franciscanos Lumerians, nome diminuto para a esmagadora maioria dos melómanos, mas de relativo culto junto das hostes do psicadelismo. Na bagagem, o quinteto trazia um novo álbum, privilegiado na escolha do alinhamento. Dos novos temas fica a sensação de que enveredam uma toada mais dançante, consequentemente mais acessível, que poderá render algum airplay em espaços nocturnos que não limitam as suas escolhas musicais ao óbvio. Nestes, sobressai a riqueza instrumental, assente numa panóplia de ferramentas com que a banda faz de cada tema um colorido de sons. O pequeno senão dos mesmos é o facto de os Lumerians quererem mimetizar cada tique das suas referências, sem se decidirem por uma orientação definida. Assim, um tema decalcado do pioneirismo dos Silver Apples dá lugar a um outro cujo início surripia "Tomorrow Never Knows" dos Beatles, e este, por sua vez, antecipa mil e um lugares-comuns do kraut. É, por conseguinte, nos temas mais antigos que os Lumerians afirmam alguma personalidade, nomeadamente com pinceladas de tropicalismo - cortesia de um jovem percussionista - em texturas sonoras narcóticas.
Igualmente inspirados em referências facilmente reconhecíveis, os barcelenses Black Bombaim têm a virtude de explorar uma ideia concisa, sem pretensões a disparar em diferentes direcções. Não obstante a colagem a nomes do heavy psych e do stoner (de Hendrix aos Black Sabbath, dos Blue Cheer aos Stooges), o trio revela uma personalidade bem vincada, adquirida pela experiência de estrada e pela qualidade de execução dos seus músicos. Em consequência, não só têm uma prestação acima do nível da dos cabeças-de-cartaz, como se afirmam como dos poucos capazes de agitar o actual marasmo da música nacional. Os longos temas instrumentais assentam numa variedade de riffs infernais e elípticos, coadjuvados por um groove demolidor que confere significativo balanço à proposta. Dos três excelentes jovens músicos, destaque para o guitarrista, dono de uma precisão que não sai beliscada pela rapidez de execução quase sempre exigida. Exemplo disso é o último tema, por sinal o mais curto do alinhamento: uma espécie de tratado de riffologia com constantes ataques groovey da secção rítmica. Depois da trip lisérgica a que os Black Bombaim conduziram a assistência, este derradeiro tema, pela sua urgência e pela sua violência rítmica, assinala um final em apoteose quase orgásmica.
A vida de Duglas T Stewart confunde-se com a já longa carreira dos BMX Bandits, pois é ele o único elemento omnipresente numa das mais belas e negligenciadas histórias da pop escocesa e, por inerência, da indie-pop mundial. Noutros tempos, e de forma intermitente, já passaram pelo colectivo membros de outras eminências como Teenage Fanclub, The Soup Dragons, ou The Vaselines. Porém, tem sido Duglas, apesar de um percurso de vida por vezes errático, que tem protagonizado esta história de devoção e persistência.
Nos tempos mais recentes, a cantora Rachel Allison tem sido a única companhia constante, mas os velhos amigos têm estado sempre por perto para dar uma mãozinha. É o que acontece no novíssimo BMX Bandits In Space, que conta com a colaboração de Norman Blake (Teenage Fanclub), Sean Dickson e Jim McCulloch (ambos ex-Soup Dragons). Para assinalar a reunião daquela que será a formação mais emblemática dos BMX Bandits, Duglas não deixou os créditos por mãos alheias e logrou o seu disco mais ambicioso e, quiçá, mais conseguido. Em estilo semi-conceptual, ...In Space é uma espécie de ópera pop na qual um astronauta, à deriva no espaço, vai recordando e discorrendo sobre os amores de uma vida. Vindo de quem vem, suspeita-se que nas letras haja muito de autobiográfico. Com um começo a fazer lembrar os já insuportáveis devaneios "espaciais" de uns Flaming Lips, chegamos a temer o pior. Mas, logo ao segundo tema, percebemos que a verve pop de Duglas, e a sua meticulosa dedicação aos tempos áureos da canção, se encontram no ponto mais refinado. No seu todo, ...In Space é um festim para os sentidos, com cada tema a revelar novos pormenores a cada audição, como se cada som fizesse parte de um complexo e gigantesco puzzle.