"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel

quinta-feira, 27 de março de 2014

Conspiração do barulho














Passados uns bons vinte anos desde os grandes acontecimentos, o universo post-hardcore norte-americano ainda contém matéria de estudo suficiente para quem procura na música a vertigem que falta à produção actual. Se por um lado foi este o habitat de nascimento de "celebridades" como os Nirvana, ou de objectos de culto firme como os Fugazi e os Girls Against Boys, por outro ainda guarda semi-obscuridades cujo reconhecimento público não foi consentâneo com a excelência da obra discográfica. Um dos exemplos mais flagrantes é o dos Unwound, um trio formado em 1991 no fervor indie da zona de Olympia, no mesmo noroeste que pariu os tais Nirvana. A dissolução ocorreu em 2002, um ano depois da edição de Leaves Turn Inside You, um duplo álbum complexo e profundo que era o culminar de um trajecto em crescendo de ambição (frustrada).

Se aquele derradeiro trabalho dos Unwound até goza de um culto digno de registo, toda a anterior discografia da banda raramente é referida nos resumos de noventas. Para tentar corrigir a história ninguém melhor que o Numero Group, selo que se tem notabilizado na recuperação de excelentes discografias relativamente esquecidas, como já antes aconteceu com a dos nova-iorquinos Codeine. Sendo estas reedições em vinil, tanto melhor, pois no caso dos Unwound era este o formato predilecto. A empreitada agora em marcha processa-se por etapas, com vários box sets, o primeiro dos quais foi Kid Is Gone no final do ano passado, com um apanhado bastante exaustivo dos primórdios da banda. Se aquelas gravações primárias são mera curiosidade para completistas, a nova Rat Conspiracy é verdadeiramente imprescindível. Nesta edição tripla podem encontrar o segundo e terceiro álbuns, respectivamente Fake Train (1993) e New Plastic Ideas (1994), ambos assistidos pelo reputado produtor Steve Fisk, figura intimamente ligada ao "som do noroeste", e aqueles em que se revelou a real valia do trio. No primeiro dos discos está resumido o código genético dos Unwound, num lote de temas prenhes de tensão, alternando longos devaneios instrumentais abrasivos com as explosões espasmódicas da berraria de Justin Trosper. Já no segundo, refina-se a fórmula, ao mesmo tempo que se evidenciam heranças post-punk britânicas, expressas tanto no sentido arty de uns Wire como na claustrofobia de uns Joy Division. Como bónus, a terceira rodela reúne temas da mesma fase incluídos em 7'' e em compilações avulsas, bem como resultados de sessões radiofónicas e alguns inéditos. A acrescer, Rat Conspiracy é objecto de apurado trabalho gráfico, no qual se incluem testemunhos na primeira pessoa que dão conta das condições precárias que rodeavam a concepção destes excelentes discos.

Valentine Card / Kantina / Were, Are And Was Or Is. by Unwound on Grooveshark
[Kill Rock Stars, 1993]  

Envelope by Unwound on Grooveshark
[Kill Rock Stars, 1994]

terça-feira, 25 de março de 2014

Mixtape #27: So You Want To Be A Rock & Roll Star



Qual é, afinal, a banda pop mais influente de sempre? Bem, as apostas recaem em maior número sobre The Beatles, com The Beach Boys na peugada. Para a disputa lanço um terceiro nome: The Byrds. Se têm algumas reservas em relação à dimensão da influência destes últimos, atentem por favor no período de inícios de oitentas, precisamente quando foi criado o conceito indie pop no Reino Unido, ao mesmo tempo que a América respondia com o chamado Paisley Underground. De um de outro lado, desde então, é infindável o número de bandas que recuperam as guitarras jangly e o sentido de harmonia característico da banda californiana. É o caso dos vinte exemplos de mais uma compilação com a marca April Skies, toda ela composta de espécimes POP com maiúsculas. Convido-vos então a mergulhar neste sonho west coast propagado no tempo e no espaço, seguindo para o efeito o link abaixo.

[Link]

01. BIFF BANG POW! - There Must Be A Better Life (1984)
02. R.E.M. - Fall On Me (1986)
03. THE THREE O'CLOCK - With A Cantaloupe Girlfriend (1982)
04. PRIMAL SCREAM - Gentle Tuesday (1987)
05. THE LOFT - Why Does The Rain (1984)
06. TEENAGE FANCLUB - I Don't Want Control Of You (1997)
07. THE RAIN PARADE - This Can't Be Today (1983)
08. RIDE - Twisterella (1992)
09. THE REVOLVING PAINT DREAM - In The Afternoon (1984)
10. BEACHWOOD SPARKS - Confusion Is Nothing New (2001)
11. THE CORAL - Butterfly House (2010)
12. THE STONE ROSES - Sally Cinnamon (1987)
13. THE DUKES OF STRATOSPHEAR - Vanishing Girl (1987)
14. VELVET CRUSH - Time Wraps Around You (1994)
15. MIKAL CRONIN - Again & Again (2011)
16. REAL ESTATE - Out Of Tune (2010)
17. THE PANDORAS - It's About Time (1984)
18. THE SPRINGFIELDS - Sunflower (1988)
19. COSMIC ROUGH RIDERS - The Gun Isn't Loaded (2000)
20. YO LA TENGO - When It's Dark (2009)

segunda-feira, 24 de março de 2014

I am the cosmos

















Talvez ainda se lembrem daquele período, algures na década de oitentas, em que os yuppies "amigos de Alex" assumiram de vez o controlo de Hollywood. Nesta nova ordem ao serviço do conservadorismo e do chamado politicamente correcto, o actor Kevin Kline era um dos rostos mais visíveis. Na altura do estrelato teve um casamento mediático com a actriz Phoebe Cates, esta relativamente mais nova e estrela de teen movies também dirigidos sob aquela bitola. O enlace ainda perdura até ao presente, e rendeu até à data dois rebentos. A mais nova da prole é Greta Kline, que com tais genes, se está a afirmar como uma improvável e digna representante de um espírito de independência que já não se usa. Talvez para evitar acusações de aproveitamento do apelido, mas também em jeito de homenagem ao poeta Frank O'Hara, a rapariga de apenas dezanove aninhos assume o nome de Frankie Cosmos.

Com aquele epíteto, seguindo a rigor a filosofia de auto-suficiência da K Records, e aproveitando as ferramentas de divulgação do presente, tem já mais de quatro dezenas de álbuns gravados em ambiente caseiro. Na sua maioria, contam-nos, mostra-se rendida ao chamado anti-folk dos Moldy Peaches e aparentados. Zentropy, no entanto, é o primeiro registo gravado em estúdio à séria, com banda de acompanhamento, e aquele em que Frankie Cosmos assume a figura tutelar de Calvin Johnson ao enveredar pela pureza das pequenas coisas característica dos Beat Happening. Para terem uma ideia da contenção, digo-vos que os temas do disco, todos somados, não ultrapassam os dezoito minutos de duração. No seu formato diminuto, desprezando artifícios supérfluos, estes são, porém, temas completos da mais pura essência pop, com a simplicidade do mestre e o factor melódico de uns Best Coast. Por outro lado, apesar das referências e da juventude da autora, são extremamente personalizados. Prenhe da inocência comum à mais genuína pop, Zentropy é também um compêndio das temáticas do indie canónico da era dourada: equilíbrio de tristeza e optimismo, apreensão perante a aproximação da idade crescida, muitas questões do foro dos afectos, e fofices sobre animais de estimação.

"Buses Splash With Rain" [Double Double Whammy, 2014]

domingo, 23 de março de 2014

Sortido finno
















Não obstante a existência de um vasto contingente ligado à Flying Nun Records, tantas vezes incensado neste pasquim, há que reconhecer a Neil Finn o estatuto de maior ícone da muita e boa pop que se produz na distante Nova Zelândia. A entrada no "circo" até se deu pela porta pequena, ainda miúdo, nos Split Enz, com os quais o irmão Tim era já uma estrela. A hora de Neil haveria de chegar, com os "seus" Crowded House, banda que lhe valeu o sucesso internacional e o reconhecimento como um escritor de canções de excepção, naquela longa linhagem iniciada pelos Beatles. No últimos anos, e apesar já ter ultrapassado as cinquenta primaveras, não abrandou o ritmo de trabalho, antes pelo contrário. À parte as várias reactivações dos Crowded House, coordenou o projecto 7 Worlds Collide, no qual convocava a colaboração de um rol de amigos e afiliados consagrados em nome das boas causas. Mais interessante do ponto de vista artístico foi a aventura Pajama Club, oportunidade para Neil e a esposa Sharon revelarem uma costela indie. A mesma que o terá levado a empenhara-se na "recuperação" da Flying Nun para mãos neozelandesas, depois da má experiência da lendária editora independente às ordens do capital americano.

Com tal ritmo de actividades, o tempo tem escasseado para Neil Finn se dedicar aos registos em nome individual. O último álbum a solo já dista uma dúzia de anos no tempo, hiato que conhece um ponto final com o novo e altamente recomendável Dizzy Heights. Para os conhecedores da pop imaculada de Finn este trabalho será uma surpresa, muito por causa do suave travo de psicadelismo, certamente uma cortesia da produção Dave Fridmann. A suavidade é, de resto, o mote das onze canções do disco, que incorporam elementos da soul tal como tratada por gente como Shuggie Otis, ou até do R&B de outras eras. Mais que um enfoque na construção das canções, Dizzy Heights empenha-se mais na sofistificação das texturas, na riqueza de pormenores, com a devida vénia ao trabalho do produtor que, apesar de todos os excessos, mantém à tona um sóbrio sentido de bom-gosto. Intocável pelo passar dos anos, a voz de Neil Finn revela extrema boa forma, caindo amiúde num registo de falsetto que realça as tonalidades da música negra das canções. Com alto teor de sacarina, este é um daqueles discos que, ultrapassada a estranheza inicial, pode induzir à habituação em coisas doces.

 
"Dizzy Heights" [Lester, 2014]

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mil imagens #47



Dexys Midnight Runners - Londres, 1981
[Foto: Janette Beckman]

terça-feira, 18 de março de 2014

R.I.P.



SCOTT ASHETON
[1949-2014]

Morreu no passado sábado, dia 15, aos 64 anos e de causas ainda desconhecidas, Scott Asheton, baterista fundador dessa verdadeira instituição da rebelião rock chamada The Stooges.

À data da morte, e para além do frontman Iggy Pop, era o único membro constante de toda a existência da lendária banda de Ann Arbor, Michigan, que os dois formaram em 1967 juntamente com o guitarrista Ron Asheton (irmão de Scott, m. 2009) e o problemático baixista Dave Alexander (m. 1975). Durante a sua primeira vida, entre a fundação e a dissolução em 1974, os Stooges editaram três álbuns essenciais para se entender o quão selvagem o rock consegue ser. Menos politizados que aqueles, mas igualmente irreverentes e dados ao desacato, protagonizaram juntamente com os MC5 um pequeno movimento de contra-cultura com origem na zona de Detroit na viragem dos sessentas para os setentas. Uns e outros, pela sua postura e pela rispidez suja da música, seriam pedras basilares da toda a estética punk. Se, tal como no caso de tantos outros percursores, aqueles três discos editados pelos Stooges não foram propriamente sucessos comerciais na altura do seu lançamento, ganhariam estatuto de culto com o passar dos anos, tornando-se referências para toda uma facção rebelde do rock. Talvez tenha sido esse significativo reconhecimento tardio que tenha estado na origem do regresso à actividade, em 2003, proporcionando a uma nova geração uma ideia do que seria o reboliço dos concertos seminais. Desde aquela data, já lançaram dois álbuns de estúdio, qualquer deles apenas uma sombra pálida daquele catálogo verdadeiramente clássico.

No Fun by The Stooges on Grooveshark
[Elektra, 1969]

Search and Destroy by Iggy & The Stooges on Grooveshark
[Columbia, 1973]

segunda-feira, 17 de março de 2014

Singles Bar #92









CRASS
Reality Asylum
[Crass, 1979]




Para além de um valente safanão no establishment da indústria musical, o furacão punk que sacudiu o Reino Unido de finais de setentas motivou também todo um movimento sócio-político de oposição e rebelião perante o poder vigente. Neste contexto, tão ou mais marcante que o aspecto meramente musical, tiveram especial relevância os Crass, colectivo de activistas agitadores que viviam os ideais anarquistas que outros usavam como mero adereço. Os seus integrantes adoptavam pseudónimos tão sugestivos como Steve Ignorant, Penny Rimbaud, Joy de Vivre, Eve Libertine, ou Gee Vaucher, e a partir de uma postura de confronto professavam o ateísmo, o feminismo, a defesa dos direitos dos animais, ou o pacifismo. A oposição a qualquer forma de poder é exemplarmente resumida no logotipo adoptado, uma espécie de negação de diversos símbolos de poder e segregação. Apesar do estatuto underground, as suas actividades públicas de ataque ao regime Thatcher, extremamente concertadas e contundentes, levaram a que vivessem sobre vigilância apertada das autoridades. À parte a agenda política, havia no colectivo também um vincado sentido artístico, que abrangia várias áreas, ou não fosse Crass sigla para Creative Recording And Sound Services.

Desde o ano do apogeu punk de 1977 até à extinção em 1984, os Crass deixaram espalhados numerosos registos discográficos em diferentes formatos. No reportório gravado destaca-se "Reality Asylum", tema inicialmente previsto para o EP de estreia, mas que, atendendo ao conteúdo altamente controverso, a banda entendeu auto-editar em formato single. Aquilo que os Crass tinham em mão era, apenas e só, aquele que será eventualmente o tema mais blasfemo alguma vez gravado no universo pop/rock. Duro ataque ao cristianismo, "Reality Asylum" enumera diferentes atrocidades cometidas a coberto da fé cristã, desde o nascimento de Cristo, até à história recente. Além disso, é um tema atípico, chocante até, para ortodoxia punk: sobre uma densa nuvem sonora feita de distorção e manipulação de sons pré-gravados, as palavras, inflamadas e cuspidas por Eve Albertine, são debitadas em puro registo spoken word. Manifesto feminista colocado no b-side, "Shaved Women" é igualmente dado à experimentação, embora com ligeiras concessões à linguagem punk mais corrente. Um e outro tema, perto dos quais as Pussy Riot não passam de mero número de variedades fruto da "geração da internet", tiveram seguramente forte impacto nos movimentos agitprop e riot-grrrl, que representaram o activismo mais radical na música popular das décadas seguintes.

Não sendo propriamente oficial - nem nunca poderia ser, em rebeldes do sistema como os Crass -, o vídeo que vos deixo é uma bem sucedida combinação da força das palavras com a sugestão das imagens:


sábado, 15 de março de 2014

R.I.P.



GARY BURGER
[1941-2014]

Morreu ontem aos 72 anos, vitimado por um cancro do pâncreas, Gary Burger, vocalista e guitarrista dos lendários The Monks, eventualmente a mais seminal de todas as bandas do garage-rock da década de sessentas.

A formação dos The Monks é no mínimo insólita, já que todos os seus cinco elementos eram militares americanos estacionados na Alemanha Ocidental, nos tempos da Guerra Fria. Com a conclusão do serviço militar, a banda embarcou numa sucessão de concertos electrizantes pelos afamados clubes rock alemães, pouco antes frequentados pelos Beatles. Ganharam fama de subversivos, com as suas letras mescladas de hedonismo e manifesto de oposição à guerra do Vietname. A ajudar tinham um visual algo arrojado para o seu tempo, no qual se incluíam os "uniformes" e os cortes de cabelo, ambos adaptados a partir dos verdadeiros monges. Mas, mais que isso, notabilizaram-se por uma sonoridade única, dinamitada pelas explosões ainda recentes do rock'n'roll genuíno e das beat bands britânicas. Deixaram gravado apenas um único álbum - Black Monk Time (1966) -, registo prenhe de rudeza primitiva com a proeminência do órgão Phlicorda e o recurso pouco usual do banjo eléctrico. Embora escassa, a obra gravada deixou uma infindável descendência, que começa no kraut-rock e vai até diferentes expressões post-punk, passando obrigatoriamente pelo petardo punk. Entre os nomes que lhes confessaram reverência incluem-se Can, Swell Maps, The Teardrop Explodes, The Fuzztones, Pixies, Clinic e, acima de todos, Mark E. Smith, que à frente dos The Fall já levou a cabo vários tributos sob a forma de versões de originais dos The Monks.

Depois da extinção da banda, em 1967, a actividade musical de todos os cinco músicos limitou-se a pouco mais que uma quantas reuniões esporádicas. Confrontado com a vasta descendência, o quinteto tem sido normalmente humilde nas suas raras declarações públicas, optando por referir a aventura The Monks apenas como uma boa memória dos tempos da rebeldia juvenil. No caso de Gary Burger, a escolha por uma vida pacata levou-o a passar os últimos anos de vida numa localidade minúscula do Minnesota, chegando inclusive a ser eleito mayor da dita.

Monk Time by The Monks on Grooveshark
"Monk Time" [Polydor, 1966]

I Hate You by The Monks on Grooveshark
"I Hate You" [Polydor, 1966]

sexta-feira, 14 de março de 2014

A escalar montanhas

















Não é que me sinta propriamente como um navegador descobridor de novos mundos, mas tenho de confessar que me enche de orgulho verificar que estes rapazes, que sigo e recomendo praticamente desde o berço, são uma das bandas mais imaculadas dos nossos tempos. Na altura, ainda os Real Estate, oriundos de uma pequena localidade suburbana de New Jersey, preparavam o álbum debute homónimo. Esse disco de 2009 espelharia apreço por gente como The Feelies, Yo La Tengo, ou Galaxie 500, num belíssimo conjunto de canções sépia resplandecentes de ócio juvenil. Era ainda um trabalho concebido sob os ditames da "baixa-fidelidade", algo que tratariam de modificar no substancialmente mais límpido Days (2011), disco mergulhado na mesma toada, mas revelador de uma fórmula aprimorada.

Com uma folha de serviços tão meritória, na qual constam ainda alguns pequenos formatos nada desprezíveis, é normal que os Real Estate já acusassem o peso da responsabilidade para o terceiro ábum, Atlas, editado há quase duas semanas. Mas não é que o raio dos rapazes se superam a si próprios com mais uma dezena de canções de primeira água, propícias para aqueles fins de tarde da transição Verão-Outono?! Bem, sobre isso os cépticos sempre poderão questionar o que Atlas traz de novo. Francamente, nada. Mas traz uma clarividência que não julgávamos possível, um refinamento da fórmula ao ponto que, embora ainda presentes, as referências citadas foram totalmente absorvidas numa linguagem que já pertence exclusivamente aos Real Estate. Fica também a ganhar a coesão melódica, talvez derivado ao facto de o trio nuclear se fazer agora acompanhar de um teclista, a juntar ao habitual baterista convidado. Quanto à atmosfera, que antes tinha mais de ennui do que propriamente de melancolia, e apesar do filtro da lente de alta-definição, é francamente sombria. Nos dez temas desfilados com o vagar característico do subúrbio, nunca possível no centro da metrópole, uma ligeira atenção às letras evidencia a constatação da idade adulta, o fim das férias sem fim e a obrigatoriedade de enfrentar as responsabilidades e os grandes desafios. Resumindo, poucas vezes a palavra "maturidade" tem uma conotação tão positiva como em Atlas.

 
"Talking Backwards" [Domino, 2014]

quarta-feira, 12 de março de 2014

O jogo das diferenças #27


RYAN ADAMS
Demolition
[Lost Highway, 2002]

YO LA TENGO
Popular Songs
[Matador, 2009]

terça-feira, 11 de março de 2014

Aqui na Terra












Outrora género confinado à autêntica marginalidade, o black metal é, de há uns anos a esta parte, matéria de trabalho para muitos daqueles que não se limitam ao óbvio na música contemporânea. Não tanto na sua forma primitiva, mas mais cedendo métodos e processos a alguma da música mais desafiadora do presente. No grupo de experimentalistas que têm explorado o género maldito surgem, à cabeça, os norte-americanos Sunn O))) e os noruegueses Ulver. No activo desde a recta final do século passado, os primeiros têm-se distinguido por uma linguagem caracterizada pelos drones arrastados e envoltos em denso nevoeiro e a excessiva amplificação, na qual cabem as liturgias negras do vocalista húngaro Attila Csihar (também dos extremos Mayhem). Quanto ao colectivo com assento em Oslo, que teve a sua origem no período mais infame do black metal norueguês (na primeira metade de noventas), cedo alargou horizontes para uma espécie de ambientalismo negro e cinemático que não rejeita as ferramentas electrónicas. Se é certo que uns e outros têm seduzido diferentes públicos, não menos verdade é dificilmente caiam no goto do conservadorismo mais purista.

Sendo toda esta gente bastante dada ao processo criativo em colaboração, era expectável que estas duas eminências se cruzassem um dia, o que veio a acontecer em 2008 por ocasião de uma sessão de gravação que teve lugar no estúdio propriedade dos Ulver ao longo de uma noite inteira. O resultado não ficou na gaveta, e de então para cá foi aprimorado por Stephen O'Malley, dos Sunn O))), e Kristoffer Rygg, dos Ulver. Materializa-se agora em Terrestrials, um trabalho surpreendente que, pese embora os aperfeiçoamentos a que foi sujeito, não omite a sensação jam daquilo que seria a sua forma inicial. Apesar da densidade das três longas faixas, Terrestrials emana uma estranha luz, algo que irá surpreender os seguidores de qualquer dos projectos, mesmo estando já estes habituados às maiores surpresas a cada novo registo. Tome-se como exemplo o título sugestivo de "Let There Be Light", a sublime faixa de abertura que evolui de um mantra primordial para uma fanfarra solene, incorporando pelo caminho elementos do minimalismo, da música concreta ou até do jazz menos ortodoxo, por via das cordas e dos sopros adicionados na mistura final. No intermédio "Western Horn" intensifica-se o surrealismo jazzístico, numa faixa que evidencia também as marcas identitárias dos projectos envolvidos: a amplificação assombrosa de uns, e a estruturação de paisagens gélidas de outros. Apenas já na recta final destes 35 minutos de música escutamos uma voz, a de Krystoffer Rygg que surge num tom de dramatismo solene na segunda metade do derradeiro "Eternal Return". Em boa verdade, não acrescenta grande coisa a este tema caracterizado pelo jogo de paradoxos dos violinos dolentes e os sintetizadores cristalinos, coadjuvados pela profundidade grave do baixo. Pelo contrário, desperta-nos do transe de assistir à beleza e ao mistério da Criação, que é a imagem que melhor descreve a audição descomplexada deste soberbo disco.

Let There Be Light by Sunn O))) & Ulver on Grooveshark
[Southern Lord, 2014]

segunda-feira, 10 de março de 2014

Discos pe(r)didos #77









MASS
Labour Of Love
[4AD, 1981]




Por força de um tremendo equívoco, a identidade sonora da 4AD é normalmente associada à música idílica de uma série de projectos revelados em meados de oitentas. Basta lembrar que os Pixies e os Throwing Muses, duas das mais bem sucedidas bandas ligadas ao selo londrino, eram assumidamente indie-rock que estaria na base da "revolução alternativa" de inícios de noventas. Mais lá atrás, nos primórdios da existência da editora, o catálogo era composto por autênticos outsiders, mesmo segundo os critérios pouco ortodoxos do post-punk. Entre eles constavam uns tais Rema-Rema, projecto inclassicável de experimentalismo extremo, que duraria apenas o tempo suficiente para lançar um EP solitário.

Com o fim dos Rema-Rema, Mick Allen (baixo, voz), Gary Asquit (guitarra) e Mark Cox (teclados) prosseguiram carreira na mesma linha experimental com os Mass, quarteto que ficava completo com o baterista adolescente Danny Briottet. Também a história destes seria breve, mas ainda assim deixaram para a posteridade um single e o álbum Labour Of Love, classificado por Julian Cope, eminência das obscuridades, como o "Santo Graal do post-punk". Este é um trabalho quase apagado da memória colectiva, não só porque já lançado na vigência do colorido na "nova-pop", mas também pela sua difícil digestão, já que é um disco de ambientes claustrofóbicos e até algo misantropo, como que gerado na mais sombria das caves. Ainda citando Cope, a massa disforme de Labour Of Love soa a algo parecido com objectos atirados por uma escadaria abaixo, o que dá uma ideia da rejeição da ortodoxia pop imposta nos nove temas do alinhamento. Porém, é um exímio desenvolvimento das pistas lançadas por bandas como Public Image Ltd ou The Pop Group, com o qual, consta, nem a abertura de um tal John Peel foi benevolente. Como peça central e perfeitamente representativa desta arriscada proposta, o tema inicial, é precisamente intitulado "Mass", e é um tríptico de dez minutos no qual estão representadas aquelas referências, mas também a fuga para a frente dos Mass. Assim, depois do drone introdutório, assistido por um saxofone ensandecido e vozes primais, sente-se a pulsão kraut que estava presente nos PiL, tudo culminando numa abrasão post-punk de batidas e vozes furiosas e guitarras violentadas. Igualmente memorável é "F.A.H.T.C.F. (que deve ler-se "Fuck All Here To Cheer For"), movido por um Farfisa planante, batida marcial, e notas minimalistas da guitarra, tudo em ambiente funéreo para dar abrigo ao tom desesperante da voz de Mick Allen. Com um título que só pode ser irónico, "Isn't Life Nice" é o ápice da cacofonia que sugere alguma improvisação. Substancialmente mais ritmados, "Elephant Talk" e "Cross Purposes" estão contaminados pelo disco lúgubre dos PiL, inclusive no tom alienado de Allen em muito semelhante ao de John Lydon. Determinante para o resultado final de Labour Of Love terá sido a tensão presente nas sessões de gravação, já que, segundo os restantes elementos, o convívio com um vocalista totalitário e pouco dado à socialização foi de difícil gestão, tendo até precipitado o fim precoce dos Mass.

Com a ruptura, Allen foi seguido por Mark Cox na fundação dos The Wolfgang Press, banda de relativa longevidade, sempre ligada à 4AD, que evoluiu das mesmas bases sombrias para uma avant-pop com contaminações soul e funk. Por seu turno, Asquit e Briottet embarcaram na aventura Renegade Soundwave, com menor visibilidade que os antigos colegas, mas em certa medida percursores de muita dance music britânica normalmente catalogada como big beat e que conheceu a massificação em meados da década de 1990. Sem notícias recentes de qualquer um dos quatro músicos, o formativo Labour Of Love foi alvo de reedição em 2011, acrescido do par de temas do single prévio.


sexta-feira, 7 de março de 2014

First exposure #64
















THE DELPHINES

À boleia da máquina do tempo, com paragens em várias estações e apeadeiros: as "festas do anoraque" da Grã.Bretanha pós-C86, a América das bandas da compilação Nuggets, o estúdio dos girl-groups de Phil Spector, e por aí fora...

Formação: Jami Eaton (voz); Harrison Colby (gtr); Lucas Riddle (bx); Jeremy Ault (btr)
Origem: Milwaukee, Wisconsin [US]
Género(s): Indie-Pop, Garage-Pop, Psych-Pop, Lo-Fi
Influências / Referências: The Shangri-Las, The Ronettes, The Sonics, The 13th Floor Elevators, Black Tambourine, Shop Assistants, Thee Oh Sees

http://thedelphines.bandcamp.com/

Careless by The Delphines on Grooveshark
[Organalog, 2013]

quinta-feira, 6 de março de 2014

There must be a better life


















Há meia dúzia de anos, a fusão de tendências sombrias com o shoegaze, algo agora muito badalado por via do debate em torno dos Deafheaven mas não só, parecia algo impensável. Foi nesse terreno inexplorado que surgiram os Have a Nice Life, dupla do Connecticut cujo nome adoptado parece um desejo à humanidade de alguém que deixou de querer viver. Para entender esta teoria basta mergulhar no universo de sombras de Deathconsciousness, o arrasador álbum duplo de estreia de 2008, percorrido por drones cortantes, texturas ambientais obscurecidas e post-punk da facção mais austera. Não só os títulos, mas sobretudo a melancolia profunda, sugeriam que a postura anti-social nutria alguma simpatia com o espectro black metal.

Seis anos de ausência pressupõem evolução, e é precisamente isso que encontramos no novo The Unnatural World, disco que, no entanto, retém a tensão do antecessor. Desta feita, não é tão intensa a combinação de elementos à partida inconciliáveis, já que os Have a Nice Life mergulham convicta e quase exclusivamente nas tendências mais gélidas e atonais do post-punk, algo que filtram através da visão de alguém que participou activamente nas movimentações post-hardcore de noventas. Um dos trunfos do novo álbum é não se deter em referências imediatamente identificáveis, pese embora a sensação de claustrofobia tenha reminiscências dos The Cure de Pornography e a frieza distanciada remeta para os esquecidos Mass. Em comum com as bandas daquela época, os Have a Nice Life têm também a coragem de experimentar, inclusive adensando a opressão  com a supressão total de ritmo pela ausência de batidas num par de temas. Uma nota ainda para a discrição da produção, que na opção pela baixa-fidelidade não só reforça a nebulosidade de The Unnatural World, como faz deste um trabalho mais autêntico e directo, liberto de truques e artificialismos de estúdio.

Defenestration Song by Have a Nice Life on Grooveshark
[Enemies List, 2014]

quarta-feira, 5 de março de 2014

Get high

















Quem já não é novo nas visitas a este pasquim virtual lembrar-se-á, decerto, dos tempos em louvávamos essa tendência revivalista a que se costuma chamar nu-gaze. Com o passar dos anos, porém, o caso mudou de figura, e hoje tenho de vos confessar alguma falta de paciência para os abundantes projectos recuperadores da vaga shoegaze de inícios de noventas. Mormente daquelas propostas bonitinhas e sintetizadas, que usam e abusam do elemento etéreo da coisa para impressionar os incautos. Neste caudal incessante há, no entanto, excepções como a dos Cheatahs, colectivo multinacional com sede em Londres que, nos últimos dois anos, nos brindou com um par de promissores EPs que eram uma abordagem  bastante livre ao shoegaze ainda a navegar em mares de alguma baixa-fidelidade.

Essas imperfeições, que talvez não fossem propositadas, foram completamente ultrapassadas no assalto sónico que é o álbum de estreia homónimo do quarteto. Numa primeira aproximação, facilmente detectamos afinidades com o universo dos My Bloody Valentine, pela saturação das texturas e pelas mudanças de frequência constantes. No entanto, ao contrário daqueles, os Cheatahs mantêm à tona o sentido pop, não embarcando em em devaneios abstraccionistas. Talvez seja apenas impressão minha, mas ao longo da dúzia de temas detectam-se até vestígios dos impulsos de grandiosidade de bandas como os Doves. Porém, a distorção é lei, e se não se alcança o nível espectral de uns Ride, pelo menos recorda-se amiúde, e com alguma surpresa, os saudosos Drop Nineteens, mestres algo esquecidos na combinação da essência pop com o ruído shoegaze. Depois de toda esta prosa, penso que já terão percebido que novidades não será coisa que vão encontrar em Cheatahs, o que não o impede de ser um disco para olhar com saudade para determinado período da década de 1990, quando os sonhos indie pareciam não ter limite. Portanto, e salvas as devidas distâncias, uma sensação idêntica àquela provocada pelo disco de estreia dos Yuck há precisamente três anos.

 
"Get Tight" [Wichita, 2014]

terça-feira, 4 de março de 2014

Everything in its right place















Com alguma preguiça, e muita injustiça, poderíamos resumir a carreira de Neneh Cherry ao par de hits "Buffalo Stance" (1988) e "7 Seconds" (1994), este último um crossover ao sabor da globalização dos tempos em parceria com o senegalês Youssou N'Dour. Qualquer dos temas referidos foi, no seu tempo, olhado com desconfiança pelo preconceito das massas "bem pensantes", que lhes negou o estatuto em certa medida pioneiro. Sobretudo no caso de "Buffalo Stance", e o respectivo álbum que o alberga (Raw Like Sushi, de 1989), uma espécie de hip-hop bastardo com nítidos reflexos nos desenvolvimentos da música urbana da última década. Antes, porém, ainda adolescente, já era uma das figuras nas expressões mais ritmadas do post-punk britânico, quer na breve passagem pelas The Slits, quer à frente dos Rip Rig + Panic. No entanto, no caso de Neneh Cherry, precocidade não rima com produtividade, e desde meados de noventas que se remeteu a um longo silêncio que durou até à edição de The Cherry Thing (2012), trabalho conjunto com os free-jazzers suecos The Thing. Neste estrondoso - mas também algo obtuso - álbum, recheado de versões de temas da sua juventude, havia dois claros intuitos: homenagear o padrasto Don Cherry pela via free-jazz, e revisitar o exílio post-punk londrino.

Foi a partir das remisturas encomendadas para alguns temas de The Cherry Thing que foi estabelecido contacto com Kieran Hebden, também conhecido por Four Tet, agora responsável pela produção do novíssimo e brilhante Blank Project, álbum que interrompe põe fim a um hiato de 18 anos sem álbuns a solo. Claramente dinamitado pelo anterior trabalho colaborativo, este é igualmente um trabalho de cariz leftfield, porém sem o teor jazzístico daquele. No suporte instrumental esteve a dupla britânica RocketNumberNine, responsável pelas batidas (orgânicas), os baixos carregados de groove, e a electrónica minimalista. O trabalho daqueles dois irmãos, embora primoroso, tenta não ser intrusivo. Esta discrição é calculada para que a estrela do disco seja a voz de Neneh Cherry, umas vezes literalmente cantada, outras naquele seu registo típico semi-rappado. Amadurecida, é uma voz de um calor intenso, não obstante as palavras, ainda e sempre com uma notória carga interventiva.

[Smalltown Supersound, 2014]