Pela sua demografia, Bristol já tem longo historial como terreno propício à miscigenação de músicas de diferentes raças. Contudo, só há coisa de 20 anos o mundo se terá dado conta da tendência fusionista dos músicos daquela cidade do sudoeste inglês. A "descoberta" aconteceu pela coincidência do aparecimento simultâneo de alguns projectos daquela proveniência que, apesar das diferenças notórias entre si, foram arrumados numa nova prateleira criada para o efeito: a do trip-hop. A rejeição de tal rótulo, que cedo se haveria de tornar pejorativo, foi unânime. O mais veemente na recusa terá sido um tal de Adrian Thaws, vulgo Tricky, figura omnipresente nas movimentações da "cena" bristoliana desde o fim da adolescência. Analisando a sua obra, particularmente a daquele par de anos em meados de noventas em que foi elevado a uma categoria próxima de génio, somos levados a concluir que, a haver alguma justeza no rótulo atribuído, seria muito mais com os seus discos que com os dos contemporâneos Massive Attack e Portishead. Tal conclusão advém da verificação de que a música dos colossais Maxinquaye (1995) e Pre-Millennium Tension (1996) mais não ser do que uma revisão enevoada do hip-hop da velha escola tão do agrado de Tricky. Não será por acaso que nesses discos encontramos versões de originais dos Public Enemy e de Eric B & Rakim, duas influências assumidas e por si citadas até aos dias de hoje.
Não sabemos se por aversão ao "fenómeno", se por fuga aos holofotes de uma fama súbita e indesejada, o que é certo é que, após o fulgor inicial, Tricky cedo tratou de tornar os seus discos progressivamente mais "difíceis", ainda que bastante aceitáveis depois de pacientemente assimilados. O pior estava para vir com a mudança para os states, coincidente com um período de sanidade próxima da demência, e com as amizades e colaborações com "estrelas" de gosto dúbio. Regressaria à pátria e renasceria artisticamente com Knowle West Boy, um excelente disco embora relativamente negligenciado, com o forte cunho biográfico de sempre, desta feita com as memórias de juventude passada no meio problemático de um bairro social.
É nesta senda de renascimento que já leva três álbuns que surge False Idols, já apontado por muita boa gente como o seu melhor disco desde aquele par dos primórdios. Aqui sou obrigado a discordar e, sem negar qualidades ao novo trabalho, apontar para esse título o já citado registo de 2008. No entanto, tenho de admitir as familiaridades deste trabalho com Maxinquaye, sobretudo na atmosfera de intimismo. Talvez a opção se deva à descoberta de Francesca Belmonte, a nova e única voz à altura da de Martina Topley-Bird para partilhar o confessionário sexual com o tom murmurado de Tricky. Com menor protagonismo, e repetindo a participação do anterior disco, surgem ainda as vozes de alemã Nneka e de Peter Silberman (The Antlers), ela num registo próximo do da jovem Neneh Cherry, ele num irritante falsetto que constitui o momento de menor inspiração de False Idols. Relativamente mais apaziguado, pois a idade amolece até os temperamentos mais rebeldes, o novo álbum fica claramente a perder na comparação com o de estreia, não só pela falta de factor surpresa, mas sobretudo pela radicalidade das nuances, dos breaks súbitos, ou do engenho na escolha dos samples que encontrávamos em Maxinquaye. Uma palavra de louvor para a capacidade de Tricky, velha raposa conhecedora de diferentes músicas, em citar a obra alheia para criar algo próprio. Acontece, por exemplo, com a apropriação da apropriação de "Gloria" de Van Morrison por Patti Smith em "Somebody's Sins", ou a referência ao standard "My Funny Valentine" em Valentine. A auto-citação tem lugar na amostra a seguir, uma espécie de versão abastardada de "Make Me Wanna Die", faixa maior do grandioso Pre-Millennium Tension.
"Nothing's Change" [False Idols, 2013]
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