GRANT HART
Intolerance
[SST, 1989]
Podem não ter conhecido o sucesso comercial de alguns contemporâneos, mas os Hüsker Dü serão, eventualmente, a banda do underground americano de oitentas mais determinante para a definição de uma sonoridade que resultaria na "explosão alternativa" protagonizada por gente como os Pixies ou os Nirvana. Nascidos em berço hardcore, cedo foram evoluindo para formatos mais próximos da canção que não renega influências de mestres pop como os Beatles e os Byrds. Os seus discos, editados com uma frequência assinalável, viviam da dinâmica das diferentes sensibilidades dos seus dois vocalistas/compositores: Bob Mould e Grant Hart. Se o primeiro, também guitarrista, chamava a si maior protagonismo com os temas mais abrasivos, este último, que acumulava com as funções de baterista, era responsável pelas composições mais emotivas e próximas dos cânones pop. As tensões entre ambos, em parte dinamitadas pelas diferentes dietas de drogas, eram imensas, e haveriam de conduzir a um ponto de ruptura quando a pressão motivada pela mudança para uma multinacional e o suicídio do manager de sempre ditaram um fim talvez precoce, mas sem mácula. A agravar o cenário, o já de si algo débil estado emocional de Grant Hart foi abalado por um teste de HIV com resultados erradamente positivos.
Ao fim, com alguma acrimónia, seguiram-se as carreiras a solo, com cada um dos dois ex-camaradas a apressar-se com o álbum de estreia, em claro espírito competitivo. Curiosamente, num primeiro instante, levou a melhor Grant Hart, ele que normalmente era secunderizado na formação dos Hüsker Dü. A vitória ao primeiro round deve-se a Intolerance, um disco de forte cunho pessoal, como já era apanágio das suas composições, no qual toca a totalidade dos instrumentos. Embora outras questões mereçam reflexão, a condição de junkie é a principal fonte de inspiração, não com o excesso de dramatismo que reconhecemos noutros, mas com a resignação de quem vê tal condição como uma inevitabilidade. Para o aferir temos os explícitos "All Of My Senses", que abre o disco, e "The Main". São temas radicalmente diferentes, o primeiro com laivos de psicadelismo e com algum protagonismo do órgão, o segundo uma sea shanty entoada a plenos pulmões. Já em "Now That You Know Me", um tema de um romantismo ferido, é notória a afeição pelo trabalho de Bob Dylan, com a presença da harmónica e tudo. As ténues ligações ao passado nos Hüsker Dü sentem-se em "Fanfare In D Minor (Come Come)", mormente pela abrasão de uma guitarra elíptica. Toda a emotividade do começo do disco é superada por "Twenty-Five Forty-One", tema já anteriormente editado em regime acústico mas que não perde nervo quando sujeito a registo eléctrico. Como uma espécie de canção de dor-de-corno gay, podemos dizer que faz uso da história da mudança de casa como uma metáfora da mudança de vida implicada pelo fim dos Hüsker Dü, já que o título faz referência ao número da porta da sala de ensaios da banda. Escrita com alguns anos de antecedência, mas alegadamente rejeitada por Bob Mould, funciona então como um perfeito epitáfio. Sem surpresas, o antigo companheiro de aventuras musicais é o alvo de "You're The Victim", registo balada com significativa amargura. Maior solenidade é verificado em "She Can See The Angels Coming", lamento mortuário que tem um órgão e os pratos da bateria com único suporte instrumental. Apesar de "Intolerance" se caracterizar por ser um conjunto sólido de canções, não deixa de ter momentos em que Grant Hart corre alguns riscos experimentalistas. É algo que verificamos sobretudo em "Roller-Rink" e "Reprise", o par de instrumentais que acusam cedências ao psicadelismo.
Ganha a primeira batalha, pareciam estar lançadas as bases para que, nos anos vindouros, Grant Hart vencesse em protagonismo o seu antigo "chefe-de-fila". A história, contudo, conheceria um volte-face, não só porque Bob Mould se revigorou ao leme dos fulgurantes Sugar, mas sobretudo pelo percurso errático e pouco produtivo de Hart ao longo da década de noventas, essencialmente perturbado pelos velhos hábitos de consumo. A recuperação plena só aconteceria nos anos mais recentes, reflectida no recuperar de alguma visibilidade e da sucessão de edições a um ritmo mais aceitável. Foi até com alguma pompa que, há precisamente uma semana, foi lançado The Argument, disco inspirado em Paradise Lost, a longa obra poética de John Milton, e nas reminiscências da amizade mantida com William S. Burroughs. Álbum de uma complexidade comparável à da obra daqueles autores, é também de um brilhantismo merecedor de todos os encómios que tem suscitado.
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