KITCHENS OF DISTINCTION
Strange Free World
[One Little Indian, 1991]
Com o fim dos The Smiths, pairou um certo sentimento de orfandade sobre a facção mais emotiva da comunidade indie. Nada que bandas como The Wedding Present ou The House of Love não tratassem rapidamente de corrigir, pelo menos até que as vagas baggy e shoegaze não se propagaram por todo o Reino Unido. Hoje menos referidos que aqueles, mas na época com idêntico protagonismo, os Kitchens of Distinction (KoD), um trio da grande metrópole londrina, impregnou com uma aura sonhadora o meio, ao ponto de, inclusive, terem servido de inspiração a alguns dos shoegazers que lhes tomariam o lugar.
Depois de um óptimo álbum de estreia (Love Is Hell, de 1989), mas ainda a acusar alguma verdura nas imperfeições que se detectam ao longo de uma audição, os KoD lograram a obra definitiva dos seus intentos com o sucessor. Alegadamente, o disco recebeu o título de Strange Free World (SFW) após uma carta de um fã japonês, que com aquelas palavras definiu a música da banda. A definição é mais que ajustada se tivermos em conta que a música dos KoD habita um lugar único, no qual uma melancolia não derrotista convive com a esperança traduzida num romantismo de cunho poético, algo que tanto fica expresso na ambiguidade das palavras, como na componente instrumental.
Em toda a obra da banda, e mais intensamente em SFW, o principal traço distintivo é a delicadeza das guitarras altamente processadas de Julian Swales, capazes de reproduzir as diferentes intensidades do zumbido de um enxame de milhões de insectos. Basta conferir no par de temas que abre o disco ("Railwayed" e "Quick As Rainbows"), qualquer deles assinalado pelo tinir das cordas como filigrana. O primeiro, tal como mais à frente "Drive That Fast", o single que mereceu relativo airplay, denuncia uma vontade de evasão, algo recorrente na obra dos KoD. A este propósito, talvez valha a pena referir que o vocalista, baixista e letrista Patrick Fitzgerald é um homossexual assumido, que muitas vezes, nas canções de cunho pessoal, expressava uma franca insatisfação pela discriminação a que se via sujeito, particularmente num universo indie à data manifestamente straight e algo sectarista. Ainda assim, em SFW tais temáticas são abordadas com maior subtileza, talvez à excepção de "Gorgeous Love", por sinal o tema mais ligeiro do alinhamento.
Se a toada atmosférica tem a predominância, por vezes os KoD também ensaiam estruturas de canções que fogem à lógica da ortodoxia. É o caso de "Hypnogogic", marcado por uma batida sincopada que chega a conter até algum groove. Ou de "He Holds Her, He Needs Her", com as guitarras de cristal a debaterem-se com as ameaças de tensão, que acabam por levar a melhor no refrão em crescendo. Não sendo o mais imediato dos seus temas, arrisco a elegê-lo o mais brilhante do seu reportório, tanto pela estrutura peculiar, como pela letra, súmula dos altos e baixos de uma relação amorosa com forte carga poética. Idêntico teor lírico encontramos em "Within The Daze Of Passion", este com a mais angustiante vocalização de Fitzgerald. E se já aqui falámos de tensão, convém referir "Polaroids", um tema em que se evocam memórias distantes enquanto a guitarra reproduz a violência do tumulto das ondas a colidir contra as rochas.
Depois de um primeiro álbum em regime de auto-produção, em SFW é parece determinante a intervenção do experiente produtor Hugh Jones, que terá trazido à música dos KoD um desejo de grandeza que já tinha ajudado a concretizar no seu trabalho com os Echo & The Bunnymen. Com estes, SFW tem também em comum uma aura marítima, materializada no derradeiro "Under The Sky, Inside The Sea", tema de proporções épicas com uma longa introdução instrumental, marcada por incursões de sopros jazzísticos, que culmina num tom vitorioso quase hínico. Um encerramento à la Bunnymen, portanto.
A seguir a SFW, haveria ainda mais dois álbuns com a marca KoD, qualquer deles bem aceite pela crítica, mas em termos de exposição mediática ofuscado pelas novas orientações, para outras paragens, do pop/rock de guitarras. Uma década exacta após este disco superlativo, não se sabe se de forma consciente, se por mero acidente, e quando o mundo os parecia ter esquecido de vez, uma banda de nome Interpol usaria a matriz única dos KoD no seu primeiro álbum, com franqueza, o único que realmente interessa.
1 comentário:
Curiosamente, nunca explorei os KoD. Agora que ouvi estes temas, posso dizer que vai nascer aqui uma paixão.
Quanto aos Interpol, apesar de conhecer as tuas preferências, alargo a apreciação ao segundo álbum.
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