GNR
Defeitos Especiais
[Vadeca, 1984]
É natural que as novas gerações olhem para os portuenses GNR como o fenómeno de massas, a banda que encheu estádios e salas de grandes dimensões com o seu pop/rock conformista da primeira metade de noventas. Esses mais novos não têm idade suficiente para ter conhecido a banda no seu auge, seguramente a mais aventureira no espectro portuga de oitentas, indiscutivelmente pop sem enjeitar algumas tendências vanguardistas. Portanto, na altura em que a banda fazia jus ao nome simplificado na sigla que muitos confundem com o de uma certa corporação - Grupo Novo Rock.
Olhando para trás, não deixa de ser caricato pensar que esse período dourado, e consequentemente a posterior consagração massiva, poderiam nunca ter ocorrido. Isto se os GNR têm levado por diante a ideia que ditou uma breve dissolução, precipitada pelo abandono, com apenas o primeiro álbum editado, do fundador Vítor Rua rumo aos Telectu, estes bem mais distantes da estandardização pop. Também Alexandre Soares, o mago da guitarra, abandonou temporariamente, mas cedo reconsiderou a opção e juntou-se ao vocalista e letrista Rui Reininho e ao baterista Toli César Machado, bem como a novo baixista Jorge Romão, os quatro compondo a formação que embarcaria na mais bela aventura pop operada em Portugal.
Escutando hoje Defeitos Especiais, o segundo álbum e o primeiro desta segunda vida - que acaba de ser reeditado para gáudio de uma vasta falange e curiosidade de outra mais curta -, facilmente se afere que o quarteto, liberto do controlo de Rua, dá largas à creatividade ao mesmo tempo que inflecte para uma sonoridade mais acessível. Como já foi dito, esta acessibilidade não significa que os GNR tenham posto de lado os seus impulsos vanguardistas. A grande conquista, e neste particular apenas com correspondência nuns Mler Ife Dada, é um certo sentir indubitavelmente lusitano numa linguagem pop com origens anglo-saxónicas. A este respeito, escutem-se o doce "Muçulmania", com ecos que vão do Alentejo ao Norte de África, ou o erótico "Mau Pastor", espécie de valsa popularucha que merecia trazer a sofisticação aos arraiais desse Portugal profundo. Para quem julga estes GNR como meros seguidores dos Talking Heads, eles comunicam o desquite com o funk no bilingue "I Don't Feel Funky (Anymore)", número que cruza o doo-wop com a canção ligeira italiana. Mais convencional para o parâmetros post-punk da época, e talvez por isso o tema mais rodado de todo o disco, "Piloto Automático" é uma celebração boémia que não perdeu o seu imediatismo com estes quase trinta anos volvidos. Passando para a secção mais arriscada do ecléctico Defeitos Especiais, temos de referir um trio de temas: o tenso "Absurdina", mergulhado em ecos e com o Reininho mais animalesco que se conhece; o global "A Última Vaga", que põe o Médio Oriente em contacto com o mundo ocidental sob algumas concessões às electrónicas; e o pulsante "Pershingopólis", manifesto anti-armamento em plena Guerra Fria que percorre territórios country-western.
À riqueza de pormenores e à variedade estilística, Defeitos Especiais junta ainda aquela que sempre foi a marca mais distinta dos GNR: as letras engenhosas de Reininho. Nesta fase ainda preservam todo a sua força subversiva, algo que afrouxou com decorrer dos anos, naturalmente. Com um domínio da Língua Portuguesa ímpar no universo pop 'tuga, o vocalista consegue ser corrosivo ("Absurdina"), perverso ("Mau Pastor"), auto-complacente ("Desnorteado"), ou senhor dos melhores jogos de palavras ("A Última Vaga"). Este estado de graça conheceria novos desenvolvimentos no subsequente Os Homens Não Se Querem Bonitos (1985), e continuidade no fenómeno de vendas Psicopátria (1986), este a beneficiar de um renovado interesse na música moderna feita em Portugal. Depois disso, veio a curva descendente sob os olhares das massas, interrompida aqui e ali com algumas ideias interessantes.
"Piloto Automático"
"Mau Pastor"
"Pershingopólis"