"Please don't think of us as an 'indie band' as it was never meant to be a genre, and anyway we are far too outward looking for that sad tag." - Stephen Pastel
Que me perdoem aqueles que os catalogam como tal, mas não consigo vislumbrar nos texanos The Strange Boys o pendor psicadelista que lhes atribuem. Talvez o eventual equívoco esteja relacionado com a terra de origem, local que outrora pariu os delírios ácidos de Roky Erickson e seus pares. Vejo neles também uma banda que, progressivamente, vai abandonando a sujidade "garageira" em favor de uma sonoridade mais aprimorada. Apesar da idade parecer não passar pelo quarteto, Ryan Sambol e companhia ostentam já a sabedoria rock de velhas raposas, imiscuindo a coisa também com um certo sentir soul e as raízes americana.
O recente Live Music, visado na maior parte do concerto de anteontem, é um passo evolutivo seguro para uma banda que, nos primórdios, privilegiava a energia em desfavor do aprumo da execução. Agora, a contenção abrange também os movimentos em palco, reduzidos ao mínimo, revelando uma maior concentração em cada detalhe, o que faz com que a banda resulte como uma bem oleada máquina de groove contido mas não castrado. À santíssima trindade rock, juntam-se amiúde as harmónicas e as pianadas que nos remetem para "cóboiadas" no oeste remoto. Talvez os White Stripes pudessem ter evoluído neste sentido, se acaso não tivessem padecido de um surto de megalomania provocado pela fama desmesurada. Ou talvez os Libertines um dia pudessem ter soado de forma idêntica, se acaso fossem produto da América profunda ao invés de terem sido gerados no reboliço londrino.
E já que estamos numa de comparações gratuitas, porque não registar as semelhanças espaçadas da voz precocemente amadurecida de Sambol com a do vocalista dos The Walkmen, isto se lhe subtrairmos os maneirismos miserabilistas do último. Um e outro são discípulos de Dylan, essa figura omnipresente na música popular americana do último meio século. Um revolucionário à sua maneira, este ícone não induziu nos The Strange Boys de terça-feira o espírito revolucionário que já se vivia à hora do fecho da função. Contudo, se há algo de que o numeroso público (o preço justo dos bilhetes sai recompensado...) do MusicBox não se pode queixar é da falta de subversão a partir da tradição. E isso, meus amigos, é rock'n'roll! E nós gostamos...
NINA NASTASIA The Blackened Air [Touch and Go, 2002]
Vem à baila o nome de Steve Albini e logo se atemorizam as donzelas mais delicadas perante a menção do nome do enfant terrible do rock mais abrasivo. Puro equívoco, reduzi-lo a esse nicho, principalmente se tivermos em conta os discos em que se tem envolvido na última dúzia de anos. Pela parte que me toca, prefiro vê-lo como alguém que privilegia a pureza crua da música em detrimento do artifício supérfluo. Tomemos como exemplo Nina Nastasia, cantautora por si "apadrinhada" e gravada desde o primeiro minuto. Também pela sua mão, o primeiro álbum de tiragem limitadíssima (Dogs de 2000, posteriormente reeditado pela Touch and Go) chegou aos ouvidos de John Peel, do qual o entusiasmo e a rodagem constante acabariam por gerar um pequeno culto.
Mas por ora, concentremo-nos no sucessor, o disco que apresentou a um público mais vasto a sua autora que, apesar das origens eslavas, mergulha como poucas contemporâneas nas profundezas da música tradicional norte-americana. Como o próprio título sugere, The Blackened Air é um disco tenso, por vezes críptico, que faz de Nastasia uma descendente directa de Karen Dalton e outras almas penadas da folk americana e derivados. A corroborar a atmosfera southern gothic, com paisagens outonais desoladoras, drama e miséria, a própria música, descarnada e registada sem efeitos artificiais. À guitarra de Nina juntam-se outros, poucos, instrumentos acústicos: acordeão, mandolim, violino, violoncelo. Quando todos se juntam, numa "sinfoneta" desengonçada, são a banda sonora de uma procissão funérea. E depois há a voz, que não sendo das mais elásticas, tem a proximidade calorosa que penetra nas temperaturas gélidas de todo o disco. É ouvi-la, em lamento de menina-moça, em "In The Graveyard", tema assombroso e assombrado pelos fantasmas de uma viuvez precoce. Ou em "This Is What It Is" e "Ocean", nos quais encarna a mulher submissa e conformada. Qualquer dos exemplos citados corresponde aos poucos temos de duração mais ou menos convencional, pois na esmagadora maioria, Nina Nastasia relata as suas histórias de amores desavindos, outros trágicos, em pequenos trechos que, surpreendentemente, são ricos no pormenor quase visual. Também neste particular, tal como na música, a poupança de meios é a principal arma do fascínio de The Blackened Air.
Mais do que uma banda, os Allo Darllin' são o veículo para as canções de Elizabeth Morris, uma australiana desterrada em Londres que antes gravava a solo sob o nome The Darlings. Com este novo projecto editou, há coisa de dois anos, um compêndio de pop imaculada que evoca os tempos da saudosa Sarah Records, a piscar o olho aos tempos em que pop era sinónimo de inocência e com umas pitadas surf que convidam a agitar o corpo. Com tais credenciais, acaba por não ser por acaso que Morris alinhe também nos Tender Trap ao lado desse ícone twee que dá pelo nome de Amelia Fletcher (Talulah Gosh, Heavenly).
Por estes dias, já a prometer temperaturas mais amenas, está a chegar o segundo disco. Chama-se Europe mas terá, obviamente, edição fora do velho continente. Nas Américas leva até selo da Slumberland, nada mais apropriado se tivermos em conta que esta tem sido nos últimos a casa por excelência da pop açucarada naquelas paragens. Do álbum não se esperam propriamente revoluções estéticas, apenas que Elizabeth & C.ª nos continuem a brindar com aquelas canções que nos fazem sentir eternamente teenagers. A primeira amostra, que é uma dos mais saborosos rebuçados pop dos últimos tempos, está aí para nos assegurar mais alguns momentos de viagem à nossa juventude.
Quando surgiram aos ouvidos do mundo, incluídos no pacote das novas bandas norte-americanas a olhar para um passado indie britânico com vinte e tal anos, os Crocodiles traziam colados, não apenas na indumentária, os genes dos Jesus and Mary Chain. Summer Of Hate (2009), o álbum de estreia, estava tão próximo de algumas manifestações musicais dos irmãos Reid que roçava o plágio. Com Sleep Forever (2010), a sombra desvaneceu-se ligeiramente, abrindo espaço para ecos de outros monstros sagrados do rock malsão da mesma era - os Spacemen 3.
Um maior hiato entre discos poderá ter tido alguns efeitos benéficos, no sentido de apurar as evidentes influências numa sonoridade mais personalizada. É isso que se espera do próximo Endless Flowers, a lançar lá para inícios de Junho, mesmo a tempo de infectar os céus azuis do Verão californiano de rock sulfuroso. Já gravado por uma formação alargada a quinteto, e não apenas pela dupla nuclear Brandon Welchez e Charles Rowell, promete tudo isso e algo mais. Sou levado a tal crença pela primeira amostra, obviamente filiado na facção sónica dos "progenitores", mas com um groove de tal forma obsessivo que confere alguma identidade própria. O efeito rolo-compressor esmaga os resquícios de "baixa fidelidade" que se escondiam nas entranhas dos anteriores registos. Oiçam com o volume no máximo, sff:
Por estes dias, comemoram-se os trinta anos sobre o início da curta guerra das Malvinas (ou Falkland, em inglês), conflito que opôs o Reino Unido à Argentina pela soberania de um pequeno arquipélago ao largo do extremo da América do Sul. Levaram a melhor os europeus mas, em terras de Sua Majestade, não faltaram as vozes críticas contra os gastos provenientes da posição inflexível de Margaret Thatcher, em contradição com as políticas que antes tinham levantado semelhante coro. No meio artístico em geral, e no musical em particular, a indignação fez-se ouvir com a mesma intensidade com que no conturbado início do consulado da Dama de Ferro.
Entre os indignados não poderia faltar Robert Wyatt, o irredutível contestatário "vermelho" que, apesar de pertencer a uma geração anterior, mereceu o respeito e a admiração de muitos jovens músicos pós-punk. Insatisfeito com a letra escrita para afirmar a sua contestação, e contando com música do produtor Clive Langer, recorreu aos serviços de Elvis Costello, amigo de ambos e, precisamente, produto da fornada gerada pela eclosão punk. Este respondeu ao apelo com uma das mais engenhosamente sarcásticas letras da música popular. Com mordaz ironia, questiona o súbito impulso do governo à indústria naval britânica, apenas para servir uma guerra, quando até aí este um dos sectores votados ao esquecimento por Thatcher. A temática, porém, surge apenas nas entrelinhas, pois a letra deriva à volta do drama dos pais que vêm os filhos partir para um hipotético destino fatal. Cantada por Wyatt no seu frágil tom peculiar, venerável para uns insuportável para outros, "Shipbuilding" acabaria por ser o único caso de relativo sucesso na carreira deste respeitável barbudo. Talvez inesperado, se tivermos em conta que não respeita propriamente os parâmetros em vigor para os hits da altura. A acrescer à "estranheza" da voz de Wyatt, a parte instrumental baseia-se no seu típico piano em repetições entrecortadas e numa subtil bateria tocada com alguma parcimónia jazzística, a remeter para os tempos do cantor nos Soft Machine.
Um ano volvido, também Elvis Costello gravaria a sua própria versão de "Shipbuilding". Não muito diferente da de Wyatt, diga-se em abono da verdade. Próxima inclusive no registo vocal, portanto bem diferente do neurótico new-waver que tinha agitado às aguas musicais britânicas poucos anos antes, e também assente no piano. Ligeiramente mais longa, tem como pormenor de charme a prestação de um convidado de honra: o trompetista Chet Baker. Costello subia assim o primeiro degrau na escadaria da "aristrocracia" pop.
No imenso caldeirão daquilo a que chamamos slowcore/sadcore, os Spain são uma proposta substancialmente mais "académica", por oposição ao cariz lo-fi da esmagadora maioria. Ao longo dos três discos que lançaram com o mesmo vagar com que a sua música discorre, é notório um apuro instrumental acima da média, bem como uma limpidez pouco comum aos seus pares. A estes factos não serão alheios os genes do líder, vocalista, baixista e compositor Josh Haden, filho do músico jazz Charlie Haden. Tanto que os próprios temas não deixam, em muitos casos, de conter algumas derivações jazzísticas que não esperamos encontrar, por exemplo, na sonoridade minimalista de uns Low, de uns Bedhead, ou de uns Red House Painters.
Depois de um longo hiato sem dar notícias, durante o qual o fim da banda não chegou a ser anunciado, Josh Haden e seus pares foram regressando, gradualmente, do exílio. Primeiro foram alguns concertos esporádicos, depois um par de singles a fazer crer que este não se tratava apenas de mais um regresso para alimentar a indústria da nostalgia. O regresso em pleno materializa-se agora com a notícia da edição do álbum The Soul Of Spain, prevista para aproximadamente daqui a um mês com selo da alemã Glitterhouse Records. Se atentarmos na capa, na linha dos discos de outrora, tanto ao nível do grafismo como da imagem, chegamos a uma conclusão que é mais uma certeza: os Spain nunca foram banda para operar mudanças drásticas de disco para disco. Certeza essa que sai reforçada da audição de um trio de temas já divulgados, a discorrer com aquele lume brando que realça a verve romântica da voz profunda de Haden. Embora ainda a carecer de confirmação com a audição dos restantes temas, fico com a impressão que a pequena novidade de The Soul Of Spain é o sublinhar do travo americana que pairava subtilmente nos anteriores registos.
Para gáudio da vasta falange que a banda conquistou por cá, consta que, poucos dias depois da edição do disco, os Spain aterram em solo português. Será no Porto, no novo Hard Club a 19 Maio. Rumores que ainda não confirmei dão também conta de uma eventual actuação no Lux Frágil, um dia antes. Porém, a últimas (más) experiências na sala lisboeta, somadas daquele jeito especial que as gentes tripeiras têm para receber, não me deixam outra opção senão rumar à Imbicta.
Morreu ontem, aos 88 anos e, ironicamente, na paz do sono, Jim Marshall, proclamado The Father of Loud. Se à partida o nome deste velhinho simpático diga pouco a muito boa gente, talvez o caso mude de figura se dissermos que, em inícios de sessentas, criou os célebres amplificadores Marshall. A partir daí, como se sabe, a guitarra tornar-se-ia uma ameaça séria aos tímpanos de todos os apreciadores do rock tocado alto-e-bom-som. Pelo feito, acabaria por ser distinguido com a Ordem do Império Britânico.
A sua criação é especialmente venerada nos meandros do heavy metal, universo no qual uma parede de amplificadores Marshall é um cliché mais que gasto. Mas também por muitos virtuosos da guitarra dados ao perfeccionismo. Entre os nomes mais caros a este pasquim, há também uma lista infindável de músicos que usaram e abusaram das possibilidades sónicas proporcionadas por Marshall. São os casos de Kurt Cobain (que morreu exactamente 18 anos antes), Thurston Moore, J Mascis, Jimi Hendrix, ou esse ícone maior da guitarra que dá pelo nome de Pete Townshend. É este último que recordamos, décadas antes de andar a alertar a juventude para os riscos de se ouvir música demasiado alto. Precisamente naquele episódio, já lendário na história do rock, que envolve explosivos em carga excessiva. Uma cortesia do impagável Keith Moon.
ROWLAND S. HOWARD _ "Life's What You Make It"[Liberation, 2009] [Original: Talk Talk (1986)]
O trajecto dos Talk Talk é um dos mais fascinantes volte-faces registados, não só de oitentas, como em toda a história da música popular. Nascida sob os auspícios "neo-românticos", e inicial e justamente apontada como seguidista, a banda londrina soube evoluir para algo mais personalizado, ao ponto de se tornar, em finais da década, caso de estudo para as tendências dos anos que se seguiriam (falamos de post-rock, pois claro!). Obviamente, uma mudança tão drástica não se opera de um dia para o outro, de um disco para o seguinte. Carece sempre de uma fase transitória, que no caso dos Talk Talk coincidiu com o álbum The Colour Of Spring, ainda pop na sua essência, mas já com assinalável apuro instrumental e alguma gravidade pouco comum em bandas habituadas às tabelas de vendas. É lá que encontramos "Life's What You Make It", um tema que acusa alguns dos tiques da produção da época mas ao qual as batidas sincopadas e as notas em loop do piano conferem uma aura sinistra até aí desconhecida. A própria letra, entre o confessional e o reflexivo, sugere a luta do vocalista Mark Hollis com as drogas, matéria que serviria de base, com os resultados que se conhecem, no magistral Spirit Of Eden (1988).
É nessa vida de excessos que Rowland S. Howard encontra afinidades, ou não tivesse em tempos, este músico australiano que foi apenas um dos mais carismáticos guitarristas da era post-punk, alinhado ao lado de Nick Cave, Mick Harvey, et al. na pandilha maldita conhecida como The Birthday Party. Esse trajecto errático encontrou paralelo na carreira musical que, à parte um bom número de colaborações, rendeu apenas dois álbuns a solo. O último dos quais - Pop Crimes - foi gravado escassos meses antes da sua morte, vítima de cancro. Por inerência, é todo ele um disco de reflexão em fim de vida. Portanto, a versão de um tema com a características de "Life's What You Make It" encaixa perfeitamente no alinhamento. Interpretado por Howard, respeita fielmente a cadência opressiva do original, realçando apenas a densidade da atmosfera. Algo que tanto se fica a dever ao timbre grave e seco da voz, como aos golpes contundentes da guitarra pelo meio de um ritmo maníaco pautado pelo piano.
Embora Norman Blake goze habitualmente de uma maior visibilidade, nos escoceses Teenage Fanclub não há propriamente um vocalista/compositor principal entre os seus três membros de sempre. Gerard Love, o baixista, é inclusive responsável pela escrita de alguns dos temas mais memoráveis da banda, entre eles o efusivo "Star Sign", com presença assegurada em qualquer top 5 dos Fannies. Agora que a maturidade bate à porta, e as coisas são feitas com o vagar e a sapiência inerentes à idade, parece ser a altura certa para cada um dos compositores se dedicar a projectos extra-TFC.
Primeiro foi Blake com os Jonny, projecto a mielas com o ex-Gorky's Zygotic Mynci Euros Childs, e agora é chegada a vez de Gerard Love ao leme dos Lighships. Um projecto bastante pessoal, pois todos os temas saíram da sua pena, pese embora para a gravação de Electric Cables, o álbum editado hoje mesmo, também tenham contribuído vários amigos. Entre eles Brendan O'Hare, baterista da formação original dos TFC, e Bobby Kildea, baixista dos Belle & Sebastian que acumula com os renovados The Vaselines. Disco de combustão lenta, especialmente indicado para fruição ao fim da tarde, Electric Cables enaltece a veia melódica de Love. Com arranjos bruxuleantes e uma especial atenção ao pormenor, é descendente de alguma da pop mais terna de sessentas, em especial dos Byrds. Com o recurso frequente a instrumentos pouco comuns na música dos Fannies, tais como flautas ou mellotrons, não deixa ainda assim de revelar afinidades com Shadows, o reflexivo e delicioso último disco daqueles. Ou, diria, até mais com as últimas aventuras dos compinchas The Pastels, com os quais Love tem sido colaborador activo. E como isto em Glasgow anda tudo ligado, Elecric Cables leva selo da Geographic, subsidiária da Domino Records parcialmente "administrada" por Stephen Pastel.